terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Mudança de FHC

https://www.oglobodigital.com.br/
31 de dezembro de 2013 [infelizmente não consigo dar control & paste da matéria]

[Comentando sobre a possibilidade do ministro Joaquim Barbosa se candidatar à Presidência da República, na qualidade de "salvador da pátria, o ex-presidente FHC, que até então defendia que a democracia brasileira estava consolidada afirmou: "Isso mostra que a nossa democracia ainda não está consolidada. É perigoso".]

Volta ao passado?

Partidos políticos e Estado
31 Dez 2013

Eros Roberto Grau


Em dezembro de 2012 anotei aqui mesmo, neste espaço de O Estado de S. Paulo, que qualquer insurgência contra a face do Estado que o Supremo Tribunal Federal é afrontaria a ordem e a paz sociais; prenunciaria vocação de autoritarismo, questionaria a democracia. Pretenderia golpeá-la. Por isso - escrevi - é necessário afirmarmos, em alto e bom som, o quanto de respeito e acatamento devemos ao Poder Judiciário e em especial, hoje e sempre, ao Supremo Tribunal Federal. Quem o agride investe contra as instituições democráticas, afronta a Constituição (O STF e a República, 8/12, A2).
Diz a Constituição, em seu artigo 17, ser livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos. Desde que resguardados, contudo, a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana.
Observar o regime democrático, um dos traços que alinham horizontes no dinamismo dos partidos políticos, reclama a observância, entre outros parâmetros, do quanto os romanos prescreviam ao afirmar a regra do honeste vivere.
Viver honestamente, mandamento que alguns não observaram. Aqueles referidos como "companheiros injustiçados" em congresso do Partido dos Trabalhadores, aos quais se hipotecou solidariedade.
Quem concluiu que alguns descumpriram o dever de viver honestamente - e concluiu na e pela sua voz enquanto uma de suas porções, o Supremo Tribunal Federal - foi o Estado. Quem o afirmou, no processo judicial conhecido como "mensalão", foi o Estado brasileiro. Pois a autoridade do Estado é uma totalidade indivisível, sua organização em funções - legislativa, executiva e jurisdicional - prestando-se unicamente a aprimorar seu funcionamento.
Não há ideias novas em matéria de política e direito. Qualquer uma delas, podemos descontraidamente sustentar, já há de ter sido enunciada, in illo tenipore, por um grego ou um romano. A afirmação da existência de três partes nos governos vem de Aristóteles, na Política. Quando essas partes estiverem em bom estado, a Constituição estará, também, em bom estado. E as Constituições distinguem-se umas das outras, prossegue Aristóteles, segundo a forma de organização e composição dessas partes. A terceira delas faz justiça. Bom estado significa, no contexto da exposição aristotélica, bem ordenadas. O sentido do estarem em bom estado essas três partes pode ser encontrado, na Ética a Nicômaco, na ideia de composição, justa medida, virtude no valor médio. Aristóteles está imediatamente atento, hoje diremos, às funções legislativa, executiva e jurisdicional do Estado.
Por isso causa espanto e estupor, horroriza mesmo o fato de um partido político, reunido em congresso nacional, desagravar "companheiros injustiçados", inusitada e desabridamente afrontando o Estado. O que vimos foi um partido político investindo não contra outro partido político (por isso são "partidos"), porém contra o próprio Estado. Contra o bom funcionamento do Estado, em benefício do qual deveriam concorrer.
Pois aanctoritas do Estado, digo-o outra vez, é uma totalidade indivisível. Isso desejo repetir, visto que os amigos do alheio, os que descumprem a regra do
honeste vivere., pretendem ocultá-lo, supondo-se capazes de tapar o sol com peneira.
O mais grave está em que essa agressão ao Estado - insista-se neste ponto: o Judiciário é uma face do Estado -, isto é, o mais grave é a circunstância de tal agressão ter sido perpetrada em presença do anterior presidente da República e de quem lhe sucedeu, sem que, ao que consta, nenhum deles se tenha oposto a essa desmedida afronta à própria soberania e ao regime democrático.
O que se pretende? Viver honestamente, dever do cidadão, é regra que vincula não apenas cada um, individualmente, mas também os que institucionalmente representam grupos em que se compõem. Ou acaso supõem, os que falam por esse ou aquele partido, não ser vinculados pelas regras que prescrevem a honestidade? Que loucura é essa que autoriza aos partidários dos.condenados pelo Estado enquanto Poder Judiciário investir contra quem os condenou, o próprio Estado?
O homem, disse Paulo Mendes Campos, um dos nossos poetas de verdade, é um gesto que se faz - ou não se faz. A liberdade consiste em afirmarmos o que os do nosso tempo denominam Estado de Direito. Defendê-lo, eis o gesto que incumbe aos homens corretos. O Estado de Direito, ainda que apenas formal, em sua expressão possível no modo de produção social que praticamos, será mera ficção se não nos curvarmos ao quanto o chamado Poder Judiciário decide em sua derradeira instância, soberanamente.
Qual decidiu o Estado brasileiro em sua face judicial, na expressão do Supremo Tribunal Federal. Negá-lo, isso é inconcebível se não pretender, quem o negue, subverter a ordem e apropriar-se da res publica. Em termos bem claros, recorrer a uma ditadura excludente da moralidade.
O que na ponta da linha aterroriza, além de horrorizar, é o fato de o pretexto da defesa dos interesses dos humildes prestar-se à apropriação mensaleira. Quem diz que é assim é o Estado brasileiro, por quem representa um dos seus três Poderes, o Judiciário. Tristes tempos. Tempos que prenunciam, no silêncio incontido dos que consentem com afrontas à soberania e ao regime democrático, a volta ao passado.
Há 50 anos, o pretexto da defesa da democracia justificou violência em nome da defesa das liberdades. Temo, de repente - não mais que de repente, qual diria Vinicius -, que a História se repita não como tragédia, mas como farsa. Desta feita a pretexto, desgraçadamente -embora justificável -, da defesa da moralidade. É inconcebível que um partido político pregue escancaradamente, em benefício de condenados pelo Supremo Tribunal Federal, a desobediência ao Estado.

*PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), EX-MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (APOSENTADO), É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Ativismos e autocontenção

Folha de S. Paulo, 30 de dezembro de 2013.

Editoriais

Equilíbrio judicial

Brasil ainda precisa achar ponto ideal entre ativismo e autocontenção dos tribunais em demandas relacionadas a políticas públicas
O ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso tem razão ao asseverar, em entrevista a esta Folha, que a inércia do Congresso Nacional por vezes oferece riscos à democracia.
Procurou justificar, dessa maneira, a atuação do STF em casos nos quais a decisão da corte parece extrapolar os limites da interpretação e invadir uma esfera que seria própria do Legislativo --como no julgamento sobre a constitucionalidade de doações eleitorais feitas por empresas.
Aos olhos de Barroso, o Supremo pode, com esse processo, recolocar a reforma política na pauta do Congresso. Seria uma forma de o Judiciário "empurrar a história".
A tese pode parecer sedutora, sobretudo quando se trata de sugerir aprimoramentos ao sistema político brasileiro. Não se pode deixar de observar, contudo, que esse ativismo do Judiciário também carrega seu feixe de ameaças ao funcionamento da democracia --e não são poucas nem desprezíveis.
Com a promulgação da Constituição de 1988, aumentou muito a chamada judicialização da política no Brasil. O fenômeno tornou-se a tal ponto abrangente que passou a afetar desde as regras eleitorais até programas de governo --como as privatizações-- e políticas públicas --como acesso à saúde, à educação e à moradia.
Reconheça-se que é função do Judiciário garantir a efetividade dos direitos políticos, econômicos e sociais sempre que o Legislativo e o Executivo deixarem de cumprir suas obrigações --ou seja, quando se abstiverem.
No limite, diante da omissão dos outros Poderes, um juiz não pode ser passivo sem com isso abdicar de sua principal missão.
A esse respeito, o STF tem se destacado. Casos envolvendo o sistema político --fidelidade partidária e verticalização de coligações--, demarcação de terras indígenas, casamento de pessoas do mesmo sexo e aborto de anencéfalos testemunham o protagonismo da corte.
É preciso considerar, por outro lado, que características inerentes ao Judiciário restringem sua capacidade de criar políticas públicas ou corrigir o rumo de decisões tomadas pelos outros Poderes.
Fazê-lo requer ações legislativas ou administrativas para as quais os tribunais não são capacitados nem vocacionados. Ainda pior, sempre haverá o risco de juízes modificarem para pior programas que, embora imperfeitos, foram concebidos por indivíduos eleitos --com maior legitimidade, portanto.
De resto, como as demandas que chegam às cortes são, em sua maioria, individuais, as intervenções judiciais contêm um efeito perverso em potencial: sem conseguirem medir ou antecipar os impactos distributivos de suas decisões, juízes podem privilegiar aqueles que, por terem recursos para pagar um advogado, puxam para si o cobertor curto das políticas públicas.
Chama a atenção, por essa razão, um caso recente envolvendo o direito à educação.
O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que a prefeitura crie 150 mil novas vagas para a educação infantil na cidade --105 mil em creches (para crianças de 0 a 3 anos) e o restante em pré-escolas (crianças de 4 e 5 anos).
A ordem judicial também estabeleceu um cronograma de implementação --metade das vagas deve estar disponível em até 18 meses-- e uma comissão de acompanhamento. Mais do que isso, chegou ao extremo --questionável-- de detalhar critérios substantivos para a distribuição dessas vagas.
A novidade é justamente um novo padrão de relacionamento entre tribunais e poderes políticos. A decisão do TJ abrange todo o contexto da educação infantil, e não apenas casos individuais --na cidade de São Paulo, cerca de 12 mil crianças conseguiram vagas em creches públicas por meio de ordem judicial em 2013, crescimento de 58% em relação ao ano passado.
Se conseguir de fato promover uma articulação funcional e cooperativa entre diferentes atores institucionais, a inovação jurisprudencial do TJ será virtuosa. O Brasil se aproximará, com isso, de países como os EUA, a Colômbia e a África do Sul, nos quais a judicialização de políticas públicas alcançou padrões mais elaborados, com ganhos para os cidadãos.
Se terminar usurpando competências do Executivo e ambicionar, em substituição ao governo, conduzir a política educacional, a decisão será desastrosa.
Em democracias consolidadas, tribunais se pautam pelo equilíbrio entre ativismo e autocontenção. Na jovem democracia brasileira, a busca por essa fórmula está em curso e dependerá, em boa medida, do sucesso (ou fracasso) de experiências como a do TJ-SP e da sobriedade dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

PCC e o Rio de Janeiro

Folha de S. Paulo, 30 de dezembro de 2011.


Facção paulista gerencia negócios do crime no Rio

Em reuniões com traficantes, PCC define envio de armas, dinheiro e drogas
Influência cresceu tanto que paulistas convenceram cariocas a vender crack, droga que evitavam nas favelas
MARCO ANTÔNIO MARTINS DO RIO JOSMAR JOZINO DO AGORA
 
O PCC (Primeiro Comando da Capital) chegou ao Rio. A facção criminosa paulista, que já montou bases em 13 Estados e até no exterior, se aproximou das três facções cariocas e passou a cuidar de negócios do crime no Estado.
A colaboração entre quadrilhas dos dois Estados ocorre eventualmente há anos, mas agora os criminosos de São Paulo são presença constante em reuniões do CV (Comando Vermelho), da ADA (Amigos dos Amigos) e do TC (Terceiro Comando) no Rio.
Nelas, definem o envio de armas, dinheiro e drogas.
A influência cresceu tanto que os paulistas conseguiram convencer os cariocas a vender crack, droga que sempre evitaram nas favelas do Rio.
Em dificuldades financeiras desde os ataques de 2006, quando passou a ser estrangulado pela polícia, o PCC diversificou sua atuação.
No Rio, a ação mais efetiva vem sendo feita junto ao CV. A facção carioca teve dívidas de R$ 7 milhões perdoadas e alguns já batizam essa união de CV-Primeiro Comando.
Levantamento do Ministério Público paulista no sistema carcerário do Rio mostra que 38 internos cariocas já foram "batizados" pelo PCC --ou seja, passaram a integrar a facção. Há ainda 15 presos de São Paulo, ligados à quadrilha, cumprindo pena no Rio.
A preocupação de policiais e promotores dos dois Estados é que a parceria cresça.
A Secretaria de Segurança do Rio disse que "não comenta ou divulga informações sobre investigações". A de São Paulo não se pronunciou.
Até os criminosos do Rio estão preocupados com a presença do PCC. Os investigadores flagraram um recado do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-mar, pedindo aos chefes do PCC que não "convertessem" os traficantes cariocas.
A partir do cruzamento de dados obtidos por promotores e policiais foi possível descobrir planos do PCC no Rio.
Do presídio de Presidente Venceslau (611 km de SP), chefes da facção decidiram, em conferências por celular, os caminhos da ação no Rio.
Em 2010, o PCC tinha dívida de R$ 4,5 milhões devido a apreensões de armas e drogas pela polícia. A facção decidiu então que era preciso criar uma base no Rio.
Assim, chefes ficariam escondidos no Estado e poderiam, das ruas, decidir os rumos da quadrilha, retirando o foco dos comparsas presos. Falam até em investir R$ 1 milhão na compra de uma casa.
Os planos para o Rio foram definidos em conversas de até duas horas que mostram Marcos Herbas Camacho, o Marcola, e Roberto Soriano, o Tiriça, dois dos chefes que estão presos, iniciando os contatos com ADA e CV.
Tiriça chega sugerir a paz entre as facções do Rio. Os traficantes do TC resistem à união das facções, mas sugerem uma "trégua" nas invasões de territórios.
Em um dos contatos, em outubro de 2010, Tiriça conversa do presídio com o traficante Antonio Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha, na época em liberdade --hoje está na prisão federal de Campo Grande (MS). Eles acertam a ida ao Rio de emissários do PCC.
Após a visita, em novembro, um traficante conversa por telefone com Tiriça e outros três do PCC sobre a ida ao Rio. "O negócio é fora do comum. O bagulho é chique, é chapa quente. É um país. Não consegui nem contar [os fuzis] do tanto que tem."
Não demorou para que, mensalmente, oito criminosos do PCC passassem a ir ao Rio para treinamentos de tiro com a ADA.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

The Economist: a crise da democracia

 Folha de S. Paulo, 27 de dezembro de 2013.

Argentina tem 'risco muito alto' de protestos
'Economist' mapeia distúrbios em 2014
LÍGIA MESQUITA DE BUENOS AIRES
 
Três países sul-americanos aparecem na categoria de "muito alto risco" de instabilidade social em 2014, no ranking elaborado pela revista britânica "The Economist": Argentina, Bolívia e Venezuela. Outros 16 países do mundo figuram nessa categoria.
A Unidade de Inteligência da revista analisou a probabilidade de protestos e distúrbios sociais em 150 países. O Brasil está na categoria abaixo da mais grave, a de "alto risco", com outras 45 nações.
Segundo a "Economist", problemas econômicos, como o aumento do nível de desemprego e a diminuição da renda, não são sempre seguidos por instabilidade social.
Na maioria dos casos de protestos, os problemas econômicos são acompanhados por elementos de vulnerabilidade como conflitos étnicos e um governo pobre institucionalmente. "Nos últimos tempos, tem havido uma erosão da confiança em governos e instituições: a crise da democracia", diz a revista.
Há 15 dias, a Argentina viveu uma onda de saques a comércios e residências em 20 dos 23 províncias do país, por causa de greves policiais.
Na última semana, moradores de Buenos Aires saíram às ruas para protestar contra os cortes de luz na cidade. Na segunda, um manifestante foi morto pela polícia durante um dos panelaços.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Órfãos

Órfãos do Judiciário
24 Dez 2013

José Casado


OTribunal de Justiça do Paraná acaba de renovar sua frota de automóveis. Comprou 80 novos para os juízes. Enquanto isso o fórum de Curitiba, frequentado pelo público, continua sendo um local "insalubre" - na definição da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça.
No tribunal de Goiás, cada desembargador possui 13 servidores públicos à disposição. O fórum tem metade disso, embora o volume de processos seja oito vezes maior.
Em Minas Gerais, construiu-se um palácio para a Justiça estadual, em "L", com torres de 11 andares e seis subsolos, 1.597 vagas de estacionamento, 16 plenários, lojas, salão para eventos e quatro auditórios - além de um exclusivo para os 25 desembargadores. Quando questionados, os magistrados responderam: "Considerando a área total a ser construída (de 138.164,61 metros quadrados), temos um valor de R$ 2.600 por metro quadrado. O custo do prédio do Tribunal Superior Eleitoral (em Brasília) é de R$ 2.800 por metro quadrado."
Desde os anos 90, os juízes dos tribunais superiores e estaduais parecem empenhados numa espécie de competição imobiliária: a cada novo prédio que mandam construir, suas salas de trabalho ficam mais amplas. O projeto do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, chegou a prever gabinete de 650 metros quadrados.
As mordomias no Judiciário proliferam, mas em velocidade menor que a insatisfação do público pagante. Basta olhar para os juizados de primeiro grau, onde estão oito em cada dez processos: 2013 vai terminar com 70% deles parados, sem resolução, segundo informa o Conselho Nacional de Justiça. Seriam necessários cinco anos para solucioná-los, desde que os fóruns não recebessem um único novo processo.
O Brasil avança na consolidação de um Judiciário confinado em palácios, recheados de cargos adornados por mordomias, e a cada ano mais distanciado da maioria da sociedade, que permanece sem o direito de acesso à Justiça.
É um país com 770 mil advogados, mas apenas 5.500 defensores públicos. São 311 advogados para cada 100 mil habitantes e apenas 3,9 defensores no mesmo universo. Os poucos defensores existentes atendem 90% da população.
Na prática, o Estado capturou a máquina judicial e a transformou em instrumento de ação contra a sociedade. É nos tribunais que União, estados e municípios fazem seu efetivo controle de caixa sobre as principais despesas - aposentadorias e precatórios, entre outras contas. Ágeis na percepção das mutações nas instituições, as empresas privadas há muito tempo saíram desse circuito e optaram pela solução de controvérsias em tribunais informais, os da mediação.
Órfãos ficaram oito em cada dez brasileiros que sobrevivem com até três salários mínimos mensais. Não têm quem os defenda - principalmente, contra o Estado. Quando encontram um defensor público, geralmente sobrecarregado, precisam entrar na fila e contar os dias no calendário da burocracia, que gasta 15 dias para adicionar uma petição a um processo.
Com sorte, talvez levem apenas dez anos frequentando as estatísticas de "congestionamento" do Judiciário. Mas podem atravessar uma vida inteira, se o processo for contra o Estado brasileiro por causa de um crédito judicialmente reconhecido como válido, mas com pagamento protelado por sucessivos governos - os provedores das verbas que sustentam as mordomias nos palácios.

domingo, 22 de dezembro de 2013

O 'jeitinho' do Congresso


Eleitor precisa fiscalizar o Congresso
22 Dez 2013

Visão do Correio


Está difícil harmonizar os interesses dos parlamentares com os da sociedade. O Congresso sempre dá jeito de encontrar alguma forma de repor mordomias extintas por exigência do cidadão. Desta vez, é a economia proporcionada pela pressão para eliminar com os acintosos 14º e 15º salários que acaba de ir por água abaixo. Os pagamentos extras, que custavam R$ 27,3 milhões anuais, foram retirados em fevereiro.
Mas, além de recuperar essa despesa, abrindo mais 152 vagas de cargos comissionados, reajustando a cota de atividade parlamentar e aumentando o auxílio-moradia, os gastos chegam ao fim do ano engordados em R$ 21,6 milhões. Ou seja, o Legislativo federal fecha 2013 abocanhando R$ 43,2 milhões a mais de verbas públicas. É um círculo vicioso, no qual nenhuma regalia desaparece sem que outra apareça logo adiante.
A lógica é a da lei do Gerson — a de sempre levar vantagem em tudo. Discursos de austeridade só servem para tentar enganar o eleitor e embalar desmandos. Mas o eleitorado não se deixa iludir. Pelo contrário. Já em janeiro, a vergonha em forma de descrédito era estampada em pesquisa sobre a confiança do brasileiro nas instituições, com o Congresso posicionado na rabeira do ranking, apenas à frente dos partidos políticos, conforme apurou a Fundação Getulio Vargas, ao medir o Índice de Confiança na Justiça (ICJBrasil).
Um dos principais pilares da democracia, o Legislativo obteve 19% de menções positivas, contra, por exemplo, 75% conferidos às Forças Armadas, 56% à Igreja Católica, 53% ao Ministério Público, 46% à imprensa, 41% ao governo federal, 39% às polícias e ao Judiciário, 35% às emissoras de tevê e 7% — notem a coerência! — às legendas que compõem a Câmara e o Senado. As duas Casas também foram mal avaliadas pela população depois dos protestos de junho, com 56% e 55% de desaprovação, respectivamente, em pesquisa do Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Ainda que indissociáveis, a descrença no Poder preocupa mais do que a gastança exacerbada. Um Congresso forte, a serviço do interesse público, não tem preço, pois refletirá positivamente em toda a vida nacional, com o aperfeiçoamento do Estado e da própria democracia. O oposto — como se vê hoje — é o retrocesso. E não haverá luz no fim do túnel sem uma reforma política verdadeira, único instrumento capaz de cavar a saída do buraco, para iluminar e arejar o ambiente.
Desacreditar apenas, portanto, é mais que improdutivo, pernicioso. Tampouco adianta o eleitor acreditar em Papai Noel e achar que pode mudar tudo no ano-novo que se aproxima. As eleições de outubro são, sim, grande possibilidade para a construção de um Congresso revigorado em 2015. Mas o cidadão precisa levar sua consciência para além das urnas, acompanhar o dia a dia da legislatura, cobrar seus eleitos. Afinal, renovações que repetem o círculo fazem parte da história do Legislativo.

Defensoria Pública:triste retrato

Triste Defensoria

É desoladora a situação da Defensoria Pública no país.
Criada pela Constituição de 1988, a instituição tem como finalidade prestar serviços jurídicos gratuitos à população carente.
Vinte e cinco anos já se passaram, mas o número de defensores públicos infelizmente continua muito aquém do necessário para o cumprimento dessa tarefa, crucial para tornar realidade o direito fundamental de acesso à Justiça.
Essa constatação é evidente a quem examinar o "Atlas de Acesso à Justiça", divulgado na semana passada pelo Ministério da Justiça.
Enquanto há excesso de advogados à disposição de quem possa pagar, é escasso o contingente de profissionais alocados no setor de orientação jurídica gratuita.
Em números totais, o Brasil tem cerca de 770 mil advogados, mas apenas 5.500 defensores. Na comparação proporcional, são 311 advogados para cada 100 mil habitantes, contra somente 3,9 defensores públicos no mesmo universo.
O descompasso, na verdade, é ainda mais gritante, porque o público-alvo da Defensoria --a parcela da população que recebe até três salários mínimos por mês, pouco mais de R$ 2.000-- constitui mais da metade dos adultos do país.
A situação é particularmente grave no Estado de São Paulo, o mais rico do país e responsável pelo maior número de processos na Justiça. Há 566 advogados para cada 100 mil habitantes paulistas, e apenas 1,43 defensor para o mesmo número de moradores.
Instaladas com injustificável atraso em diversas unidades federativas, as Defensorias Públicas estaduais muitas vezes não conseguem sequer estar próximas das pessoas que devem atender.
De acordo com o Mapa da Defensoria Pública do Brasil, estudo lançado em março deste ano pela Associação Nacional dos Defensores Públicos em parceria com o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), faltam profissionais dessa categoria em 72% das comarcas nacionais.
Ademais, de acordo como o Ministério da Justiça, o país deveria contar com um defensor público para cada 10 mil pessoas que recebam até três salários mínimos. Para alcançar tal índice, o Brasil precisará contratar mais de 10 mil profissionais. Atualmente, apenas Distrito Federal e Roraima não têm deficit nesse campo.
Fortalecer a Defensoria Pública é tarefa urgente e imprescindível para o Brasil romper a barreira que separa ricos e pobres também no acesso à Justiça. Enquanto isso não acontecer, nem todos serão iguais perante a lei.

Inércia do Congresso e o riscos para a democracia



Folha de S. Paulo,  22/12/2013 - 06h00
'Inércia do Congresso traz riscos para a democracia', diz Barroso
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FERNANDO RODRIGUES

"A inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo", afirma o ministro Luís Roberto Barroso, explicando a razão de o Poder Judiciário ter começado a julgar há duas semanas se doações de empresas em campanhas eleitorais são inconstitucionais.
Em entrevista ao programa Poder e Política, da Folha e do UOL, o mais novo integrante do STF (Supremo Tribunal Federal), que tomou posse no fim de junho, diz compreender a paralisia do Congresso quando se trata de reformar o sistema político. "Há muita dificuldade de se formarem consensos. Não querem mudar a lógica do jogo que os ajudou a chegar lá", afirma.
O STF começou a julgar no início deste mês uma ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Se ela for aceita, serão proibidas as doações eleitorais de empresas, que hoje respondem por mais de 80% do que é arrecadado pelos candidatos.
Até agora, 4 dos 11 ministros do STF já se manifestaram a favor da proibição. O julgamento foi suspenso e será retomado no ano que vem. Barroso votou contra as doações das empresas e acha que a função principal desse julgamento é fomentar o debate sobre reforma política. "Não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar", diz. "Espero que a decisão do Supremo recoloque essa questão na agenda do Congresso."
A seguir, trechos da entrevista de Barroso, concedida na quarta-feira (18), em Brasília.
Luís Roberto Barroso no Poder e Política - 12 vídeos

Folha/UOL - O sr. é o relator do chamado mensalão tucano. Quando o caso estará pronto para julgamento em plenário?
Luís Roberto Barroso - O mais rápido que o devido processo legal permitir, em algum momento do próximo ano. Não depende só de mim. O processo está em alegações finais. É a ultima manifestação do acusado em um processo, depois de ouvidas todas as testemunhas e produzidas todas as provas. Aí o processo vem concluso para mim, elaboro o meu voto, em seguida encaminho para o ministro Celso de Mello, que é o revisor. Portanto, vai depender de eu preparar o meu voto, do ministro Celso de Mello preparar o dele, e da presidência pautar para julgar.
O prazo para as alegações finais serem apresentadas se encerra quando?
Agora no final do ano.
Após o recesso de janeiro, o sr. recebe os dados e prepara o seu voto?
Exatamente. Sou relativamente rápido. Tudo estando pronto na volta do recesso, imagino que em meados do primeiro semestre o meu voto esteja pronto.
A gente deve prever o que está sob o nosso controle. Existem outros atores importantes. Existem alguns componentes aleatórios, como a própria pauta do Supremo ao longo de 2014. Tudo que eu posso dizer é que é muito provável que o meu voto esteja pronto no primeiro semestre de 2014.
Quando o Estado consegue punir em casos mais exemplares como o do processo do mensalão, a ação penal 470, há um efeito pedagógico para a sociedade?
Existe certamente o efeito pedagógico. Evidentemente ninguém deve ser condenado para ser um efeito pedagógico. As pessoas devem ser condenadas se elas efetivamente tinham uma culpa.
A ação penal 470 superou um pouco esse caráter seletivo que historicamente caracterizou o direito penal brasileiro, que no geral só incidia sobre pessoas pobres e muito mal defendidas. Houve uma certa mudança de paradigma. Um ponto fora da curva, que foi a frase que eu disse na minha sabatina e que me assombrou ao longo do semestre. O mensalão terá feito a diferença se ele não for o que ele de fato foi, um ponto fora da curva. Ou seja, se nós mudarmos a curva e tivermos um sistema punitivo que não seja exasperado, que não seja truculento, mas que seja igualitário.
Há uma certa assimetria no cumprimento das penas do mensalão? Alguns dos 25 condenados já estão presos. Outros, não. Por quê?
Se eu achasse alguma coisa relevante sobre esse assunto eu diria internamente, e não publicamente. Essa é a minha resposta para a sua pergunta. Tenho uma postura de não fazer juízos públicos sobre votos, ou posições dos meus colegas do Tribunal. O que eu acho, digo em plenário, na turma [de julgamento] e, eventualmente, digo pessoalmente. Mas não me passaria pela cabeça criticar um colega publicamente.
O sr. foi advogado do italiano Cesare Battisti, que obteve direito de permanecer no Brasil. Agora, o norte-americano Edward Snowden, que prestava serviços para a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, demonstra interesse em vir ao Brasil. O sr. vê similitudes nesse caso com o de Battisti?
Não vejo nenhum tipo de similitude, salvo um pedido de asilo ou de refúgio. Cesare Battisti era um ex-militante da extrema esquerda italiana que se refugiou no Brasil. Fugiu para o Brasil e depois obteve refúgio do governo brasileiro.
O caso do Snowden é diferente. Ele era um servidor do governo americano, salvo engano meu, acusado de traição ou alguma imputação grave. O único traço em comum que teria com o caso do Cesare Battisti é que a decisão de aceitar um estrangeiro no país é uma decisão política de governo.
Mas as circunstâncias são muito diferentes. Até porque os perigos do mundo já não são mais o comunismo que se expandia, e sim a invasão de privacidade e, às vezes, de soberania via internet. Não vejo um real paralelo nesses casos. Mas se o Brasil desse asilo a ele e eu ainda fosse advogado eu o defenderia também.
O sr. simpatiza com a causa?
Não, eu simpatizo com a defesa.
De volta ao mensalão, a ação penal 470: os embargos infringentes devem ser apreciados no ano que vem ou o sr. acha que podem até se estender mais?
Não. Para o meu gosto, teriam sido apreciados este ano ainda. Eu votei pelo cabimento dos embargos infringentes. Estou absolutamente convencido de que aquela era a solução técnica adequada. Por duas razões fáceis de demonstrar. A primeira, o regimento interno no Supremo previa expressamente os embargos infringentes nesse caso. É verdade que há uma lei posterior que não previu os embargos infringentes. Portanto, haveria uma dúvida se a lei posterior teria revogado ou não esses embargos infringentes do regimento. Mas a verdade é que o Supremo emendou o regimento muitas vezes e nunca tirou os embargos infringentes. Inúmeras decisões do próprio Supremo faziam referência a esse dispositivo do regimento. De modo que o Supremo sinalizava claramente que entendia que não tinha sido revogado. A isso se somou o fato de que, em 1998, o presidente Fernando Henrique [Cardoso] mandou uma mensagem com um projeto de lei para o Congresso para acabar com os embargos infringentes no Supremo e o Congresso, em um voto devidamente justificado, disse "não, nós queremos manter os embargos infringentes". De modo que o Executivo achava que eles subsistiam, tanto que mandou um projeto para revogá-los. O Legislativo achava que existiam, tanto que não quis revogar, e o Supremo tinha diversas decisões se referindo a embargos infringentes.
Sem nenhum clima de paixão, numa decisão puramente técnica, eu acho que os embargos infringentes cabiam [no mensalão] e acho que o Supremo faria mal se, na reta final de um julgamento emblemático como esse, tivesse produzido uma decisão casuísta para acelerá-lo sob pressão da mídia e sob pressão da opinião pública. Sofri o diabo por achar isso. Porém, a gente na vida deve fazer o que é certo e acho que isso era o que é certo.
E com relação à finalização desse caso: o sr. acredita que ao longo de 2014 seja liquidado?
Penso que sim. Todo mundo quer terminar. Tenho certeza que o relator, ministro Luiz Fux, também quer trazer a julgamento, que o presidente quer trazer a julgamento. O país precisa virar esta página. Precisamos ter uma agenda nova, uma agenda construtiva e acho que essa é uma agenda de quem está olhando para trás.
O Supremo tem se dedicado com muita frequência em todas as quintas-feiras a julgar ações penais envolvendo políticos que têm o chamado foro privilegiado. É necessário modificar essa regra?
É preciso modificar esta regra para liberar o Supremo e também por outras razões. Acho que esse foro por prerrogativa de função é um resquício não republicano da Constituição brasileira. É um resquício aristocrático de que algumas pessoas são diferentes das outras. Acho que só deveriam ter foro por prerrogativa de função pouquíssimas autoridades: o presidente da República, o vice-presidente da República, os chefes de Poder -e penso que os ministros do Supremo, para não serem julgados por um tribunal inferior, se esse fosse o caso. Fora isso, minha proposta é de uma emenda constitucional pela qual se suprimiria o foro por prerrogativa de função da maior parte das autoridades. Criariam-se na Justiça Federal de Brasília duas varas. Uma para julgar as ações penais e outra para julgar as ações de improbidade contra essas autoridades que hoje têm foro por prerrogativa de função.
Por que em Brasília? Porque a autoridade pública também precisa de um grau mínimo de proteção institucional e seria muito ruim se ela estivesse sujeita a responder uma ação em Campo Grande, ou uma ação no Oiapoque, outra ação no Recife. Para evitar essa dispersão, você concentra em uma vara, mas de primeiro grau. Teria um juiz titular para cada uma, escolhido pelo Supremo e da decisão de cada uma dessas varas caberia recurso para o Supremo, de modo que o Supremo continuaria dando a última palavra e sairia desse fronte inóspito, que ele tem dificuldade de fazer, de conduzir o processo, ouvir testemunha, fazer perícia, que atravanca a agenda do Supremo.
Tramita no Supremo um recurso da Defensoria Pública de São Paulo questionando um artigo da Lei de Tóxicos que define como crime o uso de entorpecentes para consumo pessoal. A Defensoria pede que um cidadão não seja punido por portar drogas para consumo próprio. O sr. tem opinião a respeito?
Tenho. A minha opinião é uma opinião institucional e de política pública. Primeiro lugar, talvez faça a diferença o tipo de droga.
Acho que a criminalização de drogas leves é uma má política pública. A criminalização da maconha é uma política pública equivocada. Não estou preocupado, quando falo isso, propriamente, com o consumidor. Não estou preocupado quanto de mal ela [a droga] faz. Estou preocupado com o impacto que o fato de esta atividade ser criminosa produz sobre as comunidades que são dominadas pelas pessoas que fazem o tráfico. Acho que seria uma política pública boa, ou pelo menos uma boa experiência que não produzirá nada pior do que o que a gente já tem, a descriminalização da maconha.
Essa experiência do Uruguai, por exemplo?
Essa experiência do Uruguai é um projeto piloto que a gente deve observar.
Sou do Rio de Janeiro. Há comunidades imensas no Rio, há centenas de milhares de pessoas no Rio que são reféns dos barões do tráfico. Pessoas que são oprimidas na sua liberdade de ir e vir. Pessoas que são oprimidas no direito de criar os seus filhos sem um ambiente em que o tráfico os coopte.
Descriminalizar uma droga considerada mais leve, como a maconha, resolveria o problema? O grande dinheiro dos barões do tráfico vem de outros tipos de drogas sintéticas mais complexas. Como resolver isso?
Não sou um estudioso da questão das drogas nem quero ser uma pessoa pretensiosa de ter uma solução. Sou juiz e vejo quantos casos chegam às minhas mãos de pessoas que são condenadas por tráfico, por pequenas quantidades de maconha: 100 gramas, 200 gramas, 500 gramas de maconha. O sujeito está condenado. Isso provoca um impacto extremamente negativo sobre essa juventude. Quando vai preso por 250 gramas de maconha e entra no sistema penitenciário, sai violentado, embrutecido e pronto para crimes mais graves. Do ponto de vista de uma política criminal, não teria nenhuma dúvida que descriminalizar a maconha é positivo. E a cocaína, que é uma droga potencialmente mais danosa e que produz mais dinheiro... Também no caso da cocaína a minha maior preocupação não é com o usuário, embora não me seja indiferente, é de novo com o poder que o tráfico passa a ter pela quantidade de dinheiro que arrecada. A tragédia brasileira é que para um jovem que cresce em uma comunidade dominada pelo tráfico, além dele ser cooptado, o tráfico paga a ele muito mais do que qualquer outra oportunidade de emprego formal que ele tenha.
Mas como resolver e distinguir entre o que deve ser descriminalizado e o que deveria ser mantido como crime?
Dou uma opinião limitada de um juiz em uma matéria que talvez exigisse um estudo interdisciplinar, com pessoas de diferentes especialidades. Mas quem é do ramo diz que o crack, por exemplo, desequilibra esta equação. O potencial destrutivo do crack é devastador. Portanto, deixa de ser apenas uma questão de descriminalizar a maconha, descriminalizar a cocaína. E é preciso incluir essa variável muito acessível, barata e que dizima as pessoas em pouco tempo. O país precisa de um debate sem preconceitos para saber qual é a melhor política pública. O que eu posso lhe assegurar, do meu ponto de observação, é que é uma má política pública prender dezenas de milhares de jovens por tráfico de pequenas quantidades de maconha e mesmo, eventualmente, de cocaína quando não estejam associadas a outro tipo de delinquência.
Qual é o espírito geral do STF a respeito desse tema?
Não saberia dizer.
O Supremo é um conjunto de ilhas com uma certa soberania e pouca institucionalidade. Não por culpa de ninguém, mas por culpa do sistema e como ele funciona a um tal ponto que não saberia te responder qual é a percepção geral das pessoas. Curiosamente, os ministros do Supremo debatem em plenário. Debatem ali, na frente da TV Justiça.
Isso é bom?
Já chegarei lá. Acho que já há essa percepção e outros ministros também pensam assim: era preciso haver conversas internas institucionais, de o Tribunal se repensar, de o Tribunal fazer -isso eu acho e outros colegas acham, não vou dar nomes para falar só por mim- uma revolução no modo que o Supremo opera. O Supremo julga muito, julga muita coisa irrelevante e consequentemente julga sem um nível de reflexão desejável algumas questões importantes. É preciso reduzir drasticamente o número de casos que chega no Supremo. É preciso selecioná-los por um critério de relevância. A repercussão geral, por exemplo, que foi um mecanismo processual. Como é que ela funciona: para um caso ser conhecido no Supremo é preciso que dois terços dos ministros considerem que há repercussão geral. A que o Supremo tem que dar repercussão geral? O Supremo só poder dar repercussão geral aos casos que seja capaz de julgar naquele ano, porque quando você dá repercussão geral em um caso, todos os casos idênticos ficam sobrestados na origem. O Supremo tem 400 repercussões gerais pendentes, em temas importantes. Nós estamos atravancando a Justiça do país, que não pode deixar transitar em julgado essas ações. A minha proposta radical é dar no ano que vem, como tem estoque, dar dez repercussões gerais, e vamos acabar com o estoque. Pensar em uma forma de acabar com o estoque, de modo que a primeira revolução a fazer é quantitativa, qualitativa, a gente só pode admitir o que pode julgar em um ano. Senão você fica acumulando processo. Depois é preciso mudar um pouco a dinâmica da decisão. A dinâmica hoje é, como regra geral, eu fico sabendo o que o colega que senta do meu lado acha sobre a questão que ele é relator no dia do julgamento em que ele lê o seu voto. O que acontece? Às vezes eu tive que preparar um voto que é igualzinho ao dele, de modo que perdi um tempo danado que podia gastar com outras coisas. E se eu divergir, muitas vezes, não estou preparado para construir o meu argumento divergente naquele momento, porque eu fiquei sabendo o argumento dele naquela hora. Aí eu tenho que pedir vista. Então, nós tínhamos que ter um sistema, e essa é a minha proposta interna: a pauta divulgada com 30 dias de antecedência e não com quatro, cinco dias como é hoje, para eu ter 30 dias para me preparar. E o voto do relator, ou pelo menos a conclusão do voto do relator, tem que circular uma semana antes, para eu chegar na sessão já sabendo o que ele acha, porque se for para aderir eu falo "de acordo com o relator" e se for para divergir eu já organizei os meus argumentos. A mecânica de deliberação é extremamente disfuncional. A tudo isso se soma a TV Justiça. A TV Justiça tem vantagens e desvantagens. Eu acho que as vantagens prevalecem de maneira nítida sobre as desvantagens. Quais são as desvantagens? A primeira, uma certa perda de naturalidade. No momento em que se acendeu essa luz e ligou a câmera a nossa própria conversa passa a ser menos espontânea. Isso vale para todo mundo, qualquer pessoa que está sob um holofote e uma câmera perde um pouquinho da sua naturalidade. Em segundo lugar, dificulta um pouco a construção informal de consensos -"você acha isso? Mas já pensou nisso?"- em que as pessoas trocam impressões. Ao vivo e em cores a construção do consenso é um pouco mais difícil naturalmente.
Como resolver isso?
A terceira consequência são os votos que ficaram mais compridos porque as pessoas se sentem na obrigação de dizer a que vieram. Quanto ao voto mais comprido, acho que está mudando. Já há uma nova mentalidade de votar mais curto. Qual é a vantagem? É que o Brasil é um país no qual o imaginário social supõe que por trás de qualquer porta fechada estão acontecendo tenebrosas transações. E aquela imagem ao vivo e em cores para todo o Brasil de 11 pessoas discutindo construtivamente para produzir a melhor solução é uma imagem que dá transparência. É uma imagem pedagógica de como se constrói uma decisão. Acho que a TV Justiça mudou a percepção do Judiciário. Deu transparência, deu credibilidade. De certa forma, sofisticou o debate público no Brasil. Produziu-se uma distorção, que é preciso ainda de algum tempo para avaliar, que é uma certa centralidade política do Supremo em um momento em que o Poder Legislativo vive uma crise de funcionalidade e talvez representativa. Veja esse exemplo que eu vou lhe dar. O Congresso Nacional, salvo engano em 2005, aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Permitiu que os embriões congelados que sobravam dos procedimentos de fertilização in vitro fossem destinados a pesquisas científicas se os genitores concordassem. A lei passou relativamente despercebida. Uma lei importante para o país, uma decisão ética e política importante. Porém, quando o procurador-geral da República, na época o professor Cláudio Fonteles, entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a lei no Supremo, as pesquisas com células-tronco embrionárias viraram um debate público nacional. Ou seja, o debate público do Supremo teve e está tendo mais visibilidade do que o debate público no Congresso Nacional. Evidentemente isso está errado. Evidentemente não era para ser assim. O cenário por excelência do debate político é o Congresso Nacional. Daí a minha obstinação por reforma política que restitua a centralidade política ao Congresso.
Já entramos nesse tema. Ainda sobre as drogas: a posição que o sr. expressou depende, evidentemente, de ações concretas que vão chegar lá em casos objetivos que terão que ser julgados. Para o sr., prender jovens por maconha ou eventualmente até por pequenas quantidades de cocaína como se fossem traficantes não é uma boa política pública. Mas isso dependeria de mudança de lei ou já há espaço para interpretação jurídica?
A criminalização de uma conduta depende de lei, esse é um debate público que depende do Congresso. Mas para a intensidade da pena, o juiz tem um grau de discricionariedade. A condenação à pena de prisão ou a medidas alternativas o juiz tem discricionariedade. A decisão entre regime aberto ou regime semiaberto o juiz pode ter algum grau de discricionariedade.
Nesse ponto o Supremo pode atuar?
Mas o meu debate era menos jurisdicional e mais de política pública. Acho que em uma democracia nenhum tema é tabu. Tudo que está gerando problemas tem que ser objeto de debate.
O Uruguai está adotando uma nova política de liberar drogas leves -no caso, a maconha. Tem opinião sobre essa experiência?
Tenho simpatia pela experiência. Acho que a gente deve observá-la. Embora o problema do Uruguai, um país com 3 milhões de habitantes, seja completamente diferente do problema do Brasil. Se tivesse que tomar uma decisão sobre isso, precisaria de mais informação, mais debate público e mais elementos. Estou dando uma opinião informal de um observador. Para decidir a gente tem que unir mais elementos relevantes.
O Brasil é um país em que as pessoas acham muito sem terem procurado. Não sou uma dessas pessoas. Mas o Uruguai está focado no usuário e como tratar o usuário.
Quando digo que o país deve considerar seriamente a descriminalização da maconha, sem ser indiferente ao usuário, estou mais preocupado com o poder que o tráfico exerce sobre a sociedade e sobre comunidades específicas, independentemente do consumidor final.
Gostaria de terminar com o poder deletério que esse tipo de criminalidade dá a esse tipo de bandido, que se torna poderoso e rico em uma comunidade pobre. Ele vive o suposto benfeitor e coopta a juventude para o crime. Esse é o problema que está me preocupando e não a questão do usuário, que acho que é o foco no Uruguai. Nós vamos prestar atenção para ver se vai aumentar o consumo, vamos ver se as pessoas vão ficar jogadas pela rua. As duas questões são importantes, mas são focos diferentes. Do único ponto de observação que tenho, com um grau de autoridade, é como juiz, de dizer que acho ruim entupir os presídios com jovens pobres, presos com pequenas quantidades de maconha.
O sr. votou a favor de considerar inconstitucional a doação de empresas privadas para políticos em campanha eleitoral. Se as empresas forem proibidas de doarem para políticos em campanha, como deveria ser o modelo de financiamento então?
Alguém disse no julgamento: "As empresas podem legitimamente ter a sua ideologia, querer eleger um candidato, ou dar dinheiro para um partido que avança o seu modo de ver do mundo e da sociedade". Em tese, não considero inconstitucional em toda e qualquer hipótese a doação por empresa. Mas a verdade é que no modelo brasileiro não é isso que acontece.
Se você for olhar, as grandes empresas doam para o partido A, para o partido B, para o partido C ou para o candidato A, para o candidato B. Não tem nada a ver com ideologia. Elas doam ou por medo, ou porque são achacadas, ou porque querem favores.
O sistema que nós temos, que conjuga doação por empresas privadas com um sistema proporcional em lista aberta, é um sistema no qual a derrama de dinheiro produz um impacto antidemocrático e antirrepublicano.
Nós precisamos, em primeiro lugar, baratear o sistema eleitoral brasileiro. Em segundo lugar, precisamos dar um mínimo de autenticidade do sistema partidário brasileiro. E em terceiro lugar, nós precisamos de um sistema que ajude a formação de maiorias.
Presidente eleito deveria sair das urnas com uma razoável maioria de sustentação para ele não ter que negociar caso a caso, fisiologicamente, cada votação importante.
Para baratear você tem alguns mecanismos. Você tem a lista fechada, da qual há uma percepção equivocada na sociedade de que seria menos democrática do que a lista aberta. Porque o sujeito acha assim: "Mas na lista aberta eu voto em quem eu quero". É uma falsa percepção. Menos de 10% dos candidatos são eleitos com votação própria. Você vota, forma-se um quociente eleitoral para a coligação. No caso de São Paulo, quem votou no deputado Tiririca [PR], que teve uma expressiva quantidade de votos, elegeu mais três ou quatro deputados sem saber que estava elegendo. O sistema em lista aberta acaba sendo pior.
A OAB tem uma proposta que enfrenta esse preconceito contra a lista fechada: o eleitor dá um primeiro voto no partido, verifica-se quantos candidatos o partido vai fazer e depois, num segundo turno, ele vota nos nomes. Com isso você barateia as eleições.
O sr. acredita que é possível desenhar um modelo que mais adiante possa prescindir das doações diretas de empresas?
Acho que é possível desenhar um modelo que possa prescindir. Ou é até possível desenhar um modelo que a doação de empresas não tenha este impacto deletério sobre o princípio republicano e sobre moralidade pública, porque se você doa para os dois, você certamente está querendo alguma coisa.
No modelo norte-americano é proibido uma empresa doar diretamente ao candidato, ao partido. Porém, algumas janelas no modelo norte-americano com base na liberdade de expressão permitem a grupos de pessoas, inclusive empresários, formarem comitês que compram espaço no horário das televisões e fazem propaganda sobre qualquer tema. Aí favorecem candidatos. Isso nunca aconteceu no Brasil. Mas considerando-se o princípio da liberdade de expressão, se algumas empreiteiras ou bancos decidirem juntar R$ 100 milhões e fazer o mesmo haveria algum óbice legal?
Possivelmente, sim. Acho o modelo americano um desastre.
Pois é. Mas aqui qual seria a razão pela qual uma empresa não poderia comprar o horário na TV?
O modelo americano é um modelo plutocrático. É um modelo que transformou a política em um espaço dos ricos. Aí tem os ricos democratas e os ricos republicanos. Mas os Estados Unidos têm tantas coisas boas e nós temos o mau hábito de copiar as ruins. Esta é péssima. Porque eles não admitem o financiamento eleitoral direto, mas admitem a formação desses grupos cujo papel, muitas vezes, é denegrir, é desconstruir o outro da forma mais primitiva possível.
Os Estados Unidos, a grande instituição americana, essa nós não copiamos, a grande instituição americana é a universidade. De todas as grandes universidades do mundo, talvez as dez primeiras ou mais do que isso estão nos Estados Unidos. Isso nós não conseguimos fazer ainda. Um dia teremos grandes universidades. Nós copiamos as coisas erradas.
A [Suprema] Corte Americana, embora seja muito exaltada, é muito problemática. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, com todas as suas circunstâncias, é mais plural e mais sofisticado politicamente do que a Supremo Corte Americana, em que o sujeito é democrata ou republicano.
Mas o que aconteceria? No Brasil nunca aconteceu esse fenômeno dos EUA porque aqui as empresas podem dar dinheiro diretamente para os políticos. Nos Estados Unidos, esse problema chegou à Suprema Corte e foi considerado, em nome da liberdade de expressão, um direito líquido e certo de qualquer cidadão ou empresa. Aqui no Brasil, a Constituição dá o direito à liberdade de expressão. O que impediria então empresas brasileiras de fazer a mesma coisa?
Em primeiro lugar a liberdade de expressão é um direito fundamental individual, ele não se aplica a pessoas jurídicas ou pelo menos não é aplicado na mesma extensão.
Empresários como pessoas físicas dariam dinheiro e fariam esse grupo. O que aconteceria no Brasil?
Penso que teria que fazer uma interpretação teleológica do que já existe, conduziria claramente à ilegitimidade dessa prática.
O que impede o dono da padaria, o dono da oficina mecânica ou o dono da empreiteira, que ganha milhões, de darem dinheiro, montarem um grupo e comprarem um horário na TV e falar que um projeto econômico de determinado grupo político é ruim?
Porque você interpreta o direito, normalmente, pela sua teleologia, pela finalidade, pelo bem jurídico que ele está protegendo. De modo que se o Supremo declarou a inconstitucionalidade da contribuição da empresa é porque ele não quer esse protagonismo do dinheiro. Você está me lembrando um exemplo clássico do Luís Recaséns Siches, que é um autor mexicano e que esteve na Espanha, e que ele diz assim: Havia uma placa que dizia "Proibida a entrada de cão". Aí o sujeito chegou lá abraçado com um urso. Urso pode? Provavelmente, não. Na inspiração da proibição do cachorro já estava incluído o urso também. De modo que isso seria uma fraude à lei, seria uma forma de contornar uma vedação. Se vier a passar a vedação, se ela vier a ser aplicada nesse primeiro momento. O que eu espero que a decisão do Supremo provoque, se ela vier a ser nesse sentido, é o desemperramento desta agenda. A competência para fazer reforma política é do Poder Legislativo, é do Congresso Nacional.
O sr. trabalhou antes de ir para o Supremo no projeto de reforma política patrocinado pela OAB. Foi daí que resultou até nessa ação direta de inconstitucionalidade sobre doações de empresas?
Não.
Não há conexão?
Não. Fiz uma proposta para a OAB. Depois da minha, eles fizeram uma nova proposta diferente, com uma ideia que não constava na minha e que acho muito boa e original, que é essa questão do voto em dois turnos em lugar da lista fechada.
Acho que o modelo ideal é um modelo que legitime a contribuição individual, não de pessoa jurídica, combinada com o financiamento público. Mas o financiamento público só pode ser viabilizado se você baratear de maneira substancial o custo das eleições. Esse modelo de sistema eleitoral em lista aberta em que cada um corre para um lado parece um filme do Monty Python, que vi quando era jovem, em que dava-se o tiro de largada nos 100 metros rasos e corria cada um para um lado. O sistema [atual] é um pouco assim. É preciso revolucionar esse sistema e revolucionar com experiências que o mundo já pratica. Voto distrital misto, o mundo já pratica, sistema em lista fechada, a gente precisa empurrar essa agenda. É preciso fazer alguma coisa nova. Se você me perguntar qual é a solução, acho que eu não posso ter esta pretensão, nem ninguém tem a pretensão. O André Gide [escritor francês, 1869-1951] tem uma passagem feliz em que diz assim: "Acredite em quem procura a verdade, mas desconfie de quem a encontra". Portanto, a gente tem que fazer testes. Quando estive no Congresso para a minha sabatina [pela indicação para o STF], fui muito bem recebido. Tem pessoas lá que aprecio e admiro. O Congresso, pressionado pelas multidões que tinham ido para as ruas, naquele momento tinha uma reunião dos líderes discutindo. "Nós vamos fazer a reforma política, não queremos nem plebiscito, que a presidente quer, nem Constituinte exclusiva, vai sair daqui".
...
...E logo que o povo saiu da rua essa agenda foi desarticulada. Espero que a decisão do Supremo recoloque essa questão na agenda do Congresso. Mas acho que esta é uma competência política, decisão política tem que tomar quem tem voto. Agora, a inércia do Congresso traz riscos para a democracia. E proteger as regras da democracia é um papel do Supremo.
O sr. acha que o Congresso tem sido inerte por que razão nos últimos tempos?
Porque há muita dificuldade de se formarem consensos. Porque nós temos esse sistema político, esse sistema partidário. Nós temos pessoas que, compreensivelmente -faz parte da natureza humana- não querem mudar a lógica do jogo que os ajudou a chegar lá. Portanto é tudo muito difícil. A solução que a presidenta propôs era, de certa forma, engenhosa. Ou transfere diretamente para a população ou vamos transferir para um órgão distinto do Congresso. Não seria uma Constituinte, seria alguém que, por delegação do Congresso, faria uma reforma política. Seria um pouco o reconhecimento do Congresso de que "nós não estamos conseguindo fazer aqui e, portanto, vamos delegar essa competência". Mas a realidade é que nesse mundo ninguém quer delegar competência.
Agora, a propósito disso houve muita controvérsia a respeito dessa ideia de se convocar deputados ou senadores com poderes constituintes. Ainda que fosse por meio de um plebiscito. O sr. tem opinião sobre isso?
Acho que a ideia foi mal compreendida. Ou, por simplificação, de se chamar Constituinte exclusiva. Não existe isso. Uma Constituinte é soberana. Nenhuma força externa heterônoma dirá a uma Constituinte o que que ela pode ou deve fazer. Então, de Constituinte não se trata. É a primeira observação. Mas a criação de um órgão externo que, por delegação do Congresso, elaborasse o projeto...
Mas isso não vai acontecer nunca...
...Não vai acontecer nunca. Porque aí o Congresso pôs-se em brios e disse: "Eu não vou abdicar dessa competência, eu vou fazer".
Mas não fez.
O problema passou. Porque o problema passou. Isso foi uma pena, porque aquela energia cívica que foi o povo nas ruas em maio foi formidável. Atrapalhou a minha posse, como você testemunhou, mas povo na rua, mobilizado por mudança legítima, é a energia que move a história.
Quando aquilo desandou em vandalismo, nós perdemos essa energia. Porque é assim que se produzem as grandes transformações. Nós perdemos aquela energia. Mas, a gente, para fazer andar a história, não precisa estar com o povo gritando atrás. É preciso interpretar e fazê-la andar. De modo que isso foi o que disse no meu voto. Está ruim, não está funcionando, nós temos que empurrar a história. Está emperrado, nós temos que empurrar.
O ideal então seria que o Congresso, à luz dessa possível decisão do Supremo, tomasse uma iniciativa e fizesse algo?
Seria o ideal. Não sei se dará tempo. Acho que há muitas dificuldades de consenso no Congresso. A única coisa que legitimaria a solução externa é você reconhecer: "Eu não estou conseguindo fazer, porque aqui na minha instituição tem tantos interesses na mesa que eu preciso que isso venha de fora". Mas ninguém quer.
Se o Congresso não correr e não fizer algo e o Supremo finalizar o julgamento dessa ação a respeito de doações de empresas, haverá tempo para aplicação da nova regra?
Havia três pedidos na ação da OAB. O primeiro é para que pessoa jurídica não pudesse participar de financiamento eleitoral. A segunda é que houvesse um teto para as pessoas físicas. E a terceira, que houvesse um teto para o autofinanciamento, para o gasto do próprio dinheiro do candidato. Quanto a essas duas, a decisão do ministro [Luiz] Fux, que eu acompanhei, dava 24 meses. Quanto à não participação de empresas, era para efeito imediato.
O ministro [Dias] Tofolli acompanhou o ministro Fux, mas disse que quanto à modulação temporal, o momento em que vai começar a viger, ainda não se manifestou. Vai esperar o avanço do debate. De modo que se houver uma perspectiva real de que o Congresso vá fazer, acho que o Supremo deve ser deferente...
Estabelecer um prazo...?
É difícil estabelecer um prazo. Primeiro porque o Congresso não cumpre, você desmoraliza a decisão. E nem sei se é próprio ficar estabelecendo prazo para outro órgão. O que eu diria é que há um problema constitucional, porque se fosse uma mera decisão política o Supremo não estaria legitimado. Qual é o problema constitucional? A representação política está distorcida por conta do dinheiro.
Mas aí teria que valer imediatamente...
Primeiro, a minha posição teórica: quem tem a última palavra é o Congresso. É o Congresso que tem que fazer isso. Mesmo o Supremo decidindo, o Congresso pode fazer depois. Não pode fazer a mesma coisa que a gente disse que é inconstitucional, mas pode fazer outra.
Mas se o Congresso não fizer algo, prevaleceria a validade imediata da inconstitucionalidade?
É isso, é isso.
Se se achar que o Congresso efetivamente vai fazer, não descartaria modular a própria questão do financiamento por pessoa jurídica para um momento posterior. Curto, mas posterior. Estou falando em tese. Vou ouvir os debates. A votação não acabou. Então alguém poderá me convencer de que talvez não seja bom aplicar isso nesta eleição [de 2014]. Se houver um comprometimento do Congresso -"olha, está aqui o que nós vamos fazer, mas é para logo"-, se for satisfatório, acho que pode ser uma alternativa.
O sr. poderia reformar o seu voto no final?
Poderia, na questão da modulação.
Juízes no Brasil têm 60 dias de férias por ano. Sem contar os feriados prolongados, que são emendados. Qual é a sua opinião a respeito?
Eu não as tiro, é o período em que eu estudo, é o período em que eu escrevo. E mesmo no Supremo, que é por onde eu posso falar. Quer dizer, janeiro, para nós lá, não vai ser mês de recesso. Eu tenho 8 mil processos, a gente está correndo atrás do prejuízo.
Mas o que o sr. acha desse sistema que dá oficialmente aos juízes 60 dias de férias ao ano?
Tudo que não seja republicano, tudo que não seja igualitário, é problemático. A única observação que eu faria, que considero importante, é que um juiz não trabalha só quando está ali na frente das câmeras da TV Justiça, na quarta-feira à tarde, na quinta-feira à tarde, e na turma [de julgamento] na terça-feira à tarde. Asseguro que trabalho nas manhãs e trabalho nas segundas e nas sextas.
Eu considero que tudo que não seja republicano é indesejável, e portanto se todas as categorias têm um mês [de férias], eu acho que os juízes deveriam ter um mês também. Se você quer minha opinião, em tese, é esta.