sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Abranches: ameaça à democracia

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17 setembro, 2013

Bloqueio à Rede ameaça democracia

Sérgio Abranches
A Rede no momento é mais que o partido: é um teste ácido para a democracia e a Justiça Eleitoral. Só será partido e, portanto, sujeito à contestação ou beneficiário do apoio popular, nas linhas das divisões que o eleitorado vier a assumir, após o seu registro. Seu desempenho partidário será, então, um desafio para suas lideranças, filiados e eleitores. Hoje, seu registro é um problema de todos que querem uma democracia com igualdade de condições e oportunidades e plenamente competitiva.
Não é preciso militar no campo ambiental, nem ser ambientalista para saber que Marina Silva está sofrendo um claro assédio coronelista. Há cartórios da Justiça Eleitoral usando práticas de currais eleitorais, sob controle de diferentes partidos dominantes, para barrar o registro da Rede, seu partido. Enquanto isso, partidos sem identidade ou história e apoio social conhecido, são registrados em silêncio. O Solidariedade, cuja formação, com muito menos capacidade de mobilização, embora contando com base sindical e a liderança de Paulinho da Força, que tenta impossível anonimato, tem transitado sem dificuldades similares pelo processo de registro na Justiça Eleitoral. Tudo indica que conseguirá o registro em tempo. O PEN (Partido Ecológico Nacional), já obteve o seu. O Solidariedade, mesmo antes do registro, já entrou no mercado de trocas partidárias, mostrando que em nada inovará e nada acrescentará ao sistema partidário brasileiro. O PEN é uma sigla vazia. Seu conteúdo político será definido pelas lideranças que o assumirem de fato. A Rede representa um movimento, tem uma liderança clara e transparente, que não nega, nem tenta disfarçar sua atuação na construção partidária, com base social e ampla popularidade. Todavia é a sigla com mais dificuldades de avançar na obtenção do registrado. Será por isso que enfrenta obstáculos?
Todo o procedimento autocrático de cartórios notoriamente sob a influência política de chefetes ou chefões locais, sem qualquer transparência, conta com certa distância complacente do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE deveria resguardar a lisura, a isonomia de tratamento e a transparência do procedimento de registro, que é uma fase crítica do processo democrático pré-eleitoral. Ao examinar o recurso da Rede, deveria se indagar porque a maioria das assinaturas em apoio à formação do partido glosadas pelos cartórios é de pessoas que não votaram nas últimas eleições, seja porque não estavam obrigadas, por estarem acima da idade do voto compulsório, seja porque não puderam, por estarem abaixo da idade de votar naquela data. Foi assim também com os outros? Quantas assinaturas foram rejeitadas sem qualquer justificativa no processo de registro do PEN ou do Solidariedade? No caso da Rede foram em torno de 100 mil. Não seria o caso de rejeições sem justificativa aceitável, juridicamente fundamentada, serem revertidas liminarmente pelo TSE em assinaturas válidas?
Encontrei-me com Marina Silva recentemente em um evento público. Enquanto conversávamos, foi abordada para fotos, uma palavra, uma história, como é natural, por grande número de pessoas. A maioria acima da idade para o voto compulsório ou muito jovem para ter podido votar nas últimas eleições. Os cartórios miraram nesses setores numerosos de sua base eleitoral, para rejeitar apoiamentos. É no mínimo esquisito.
Marina Silva está confiante, mas preocupada. Tem mesmo que estar preocupada. Os anais recentes da política brasileira registram enorme retrocesso oligárquico e coronelista, sobre o qual já escrevi aqui. Só os tribunais superiores, mais comprometidos com a legalidade, a isenção e a racionalidade dos atos da Justiça podem controlar e coibir o desmando cartorial nos currais eleitorais de numerosos estados da federação. E ela deve estar confiante também, a mobilização de suas bases é visível e inegável. O sucesso na criação de diretórios estaduais e regionais supera o de muitos outros partidos, cujo processo de registro não teve a mesma transparência, nem enfrentou as mesmas dificuldades. A Rede opera à luz do dia e torna públicas as dificuldades que vem enfrentando, muitas, se não inéditas, no mínimo pouco usuais.
A maior desvantagem de Marina Silva é sua postura. Não quer usar as mesmas armas dos que conspiram contra a democracia eleitoral. “Não queremos ficar como eles, queremos manter a diferença”, ela me disse. E deve. Mas precisará usar recursos significativos de mobilização e pressão para contrapor alguma força à truculência coronelista que retornou à prática política brasileira nos últimos anos. Quem quiser saber mais sobre essas práticas, recomendo ler o clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto. Com as necessárias atualizações de contexto e tecnologia, continua um retrato fiel dessas práticas contumazes de anulação das regras eleitorais pela discricionariedade, acobertada pela falta de transparência.
Não sei se a Rede tem ou não o número de assinaturas requeridas pela lei. Suspeito que tenha e que parte das rejeições seja espúria. Determinar isso com precisão e presteza seria função prioritária do TSE. E por quê? Porque é obrigação precípua do TSE garantir a eleição mais livre, legítima, representativa e democrática possível. Uma eleição é tão mais livre, legítima, democrática e representativa, quanto maiores forem a incerteza e a competição. Eliminar uma força que já se provou relevante, ter ampla base social, lideranças com alto grau de legitimidade e popularidade e elevada participação de pessoas que exercem o voto voluntário, portanto, que tendem inercialmente para a alienação eleitoral, reduzindo o universo de votantes, significa reduzir a competição e a representatividade da eleição.
É claro que o fator Marina Silva introduz incerteza no resultado do pleito, que até a queda recente da popularidade da presidente Dilma Rousseff (que permanece abaixo dos 50%, que são o limite da zona de conforto), era dado como apontando para relativamente tranquila reeleição da presidente. Também interfere na rivalidade obsoleta entre PSDB – hoje um partido sem liderança clara e sem identidade – e PT, um partido outrora de bases sindicalistas e populares, que se peemedebizou. Tornou-se um partido com espinha dorsal gelatinosa e moldável.
Essa desarrumação do tabuleiro eleitoral promovida pela candidatura de Marina Silva, com um índice de popularidade superior ao dos candidatos com mandato, como Aécio Neves e Eduardo Campos, incomoda. Elimina certezas, desfaz arranjos predeterminados, ameaça de cancelamento contratos oportunistas mais açodados. E é isso que alimenta o cambalacho, a rejeição de assinaturas sem justificativa, de modo discricionário e autocrático. No mundo cartorial, tudo pode ser justificado: há leis, regras e procedimentos rotinizados, burocratizados. Se não há justificativa, não há base em nenhuma lei, regulamento ou rotina, logo, o TSE deveria decidir liminarmente que, dada a ausência de base, vale a decisão pró-demandante, ou seja a aceitação das assinaturas. É o princípio, por analogia, do notório in dubio pro reo.
A prevalecer o tratamento desigual para desiguais nos tribunais superiores do Brasil, a democracia brasileira sofrerá um duro golpe judiciário. Ela já está em crise. É evidente a falta de representatividade dos partidos existentes. É nítida a disfuncionalidade de muitos procedimentos legislativos. É patente a arbitrariedade de decisões ao arrepio da vontade popular, do bom senso e da justiça. São todos componentes da democracia, além da transparência e do tratamento igual para todos perante a lei. Democracia demanda uma grande dose de bom senso dos Três Poderes. Exige que a Justiça se faça com um olho na Constituição e na lei e outro no povo de quem deve emanar o poder em primeira instância, e seja cega às pressões dos poderosos.
A democracia está em cheque em todo o mundo. A política não se atualizou. A representação se estiolou. As sociedades avançaram. Temos uma ágora social, articulada pelas redes sociais, que debate, inquieta, mobiliza, mostra indignação, protesta e constrói caminhos de esperança. Mas não temos ainda a ágora política, que dê voz efetiva aos cidadãos, que reflita as demandas da ágora social. Teremos que caminhar para ela.
Essa marcha para o aprofundamento da democracia não invalida, nem preclui, os princípios elementares da democracia representativa, como os direitos individuais; a liberdade de expressão, reunião, organização e voto; a liberdade de imprensa; a competição com isonomia (igualdade de oportunidade e condições) na busca da poliarquia, em contraposição à oligarquia vigente e como antídoto máximo à autocracia.
O destino da Rede não será um evento trivial. Será um divisor de águas e um teste fundamental, ácido mesmo, para a Justiça Eleitoral. Por ele saberemos se ela está cumprindo a função de proteger a democracia e fazer valer a vontade popular ou se, por complacência ou anuência, está dando cobertura às manobras oligárquicas.
Uma vez registrada a Rede, cada um votará como quiser, em quem quiser. Mas até lá, todos que são pela democracia, são pela Rede.


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