terça-feira, 13 de agosto de 2013

Democratização dos privilégios

[Querer privilégios é a estratégia dominante. Isto é incompatível com uma democracia de alta qualidade]

Marcos Lisboa: "No Brasil, o privilégio é a norma"
12 Ago 2013
Entrevista
O economista diz por que o país virou a "república da meia-entrada"
Marcos Coronato e Guilherme Evelin

O economista Marcos Lisboa integrou a equipe do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e foi um dos principais formuladores da política econômica no primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva. Ao deixar o governo, Lisboa trabalhou no Banco Itaú. Há quatro meses, voltou aos círculos acadêmicos como vice-presidente do Insper, escola de administração, economia e negócios de São Paulo. Publicou um artigo em inglês, com a mulher, Zeina Latif, sobre "Democracia e crescimento no Brasil". Nele, descrevem o processo, disseminado na sociedade brasileira por meio do qual "grupos especiais conseguem obter privilégios e benefícios do governo" e debilitam a economia. O artigo aponta a existência de uma "república da meia-entrada" no Brasil. Virou tema de debate quente entre os economistas desde as manifestações de junho.
ÉPOCA - Por que o Brasil é uma república da meia-entrada?
Marcos Lisboa - Noutros países, a concessão de privilégios e o tratamento diferente são algo excepcional. No Brasil é parte da própria regra. A escolha de vencedores, setores ou empresas, é um aspecto central de nossa política de desenvolvimento desde Vargas.
ÉPOCA - Como isso se reflete no cotidiano da economia brasileira?
Lisboa - Isso se reflete no crédito dirigido. Há um Brasil que paga spread (diferença entre a taxa de juros paga pelos bancos e a taxa de juros cobrada de seus clientes) de 2%, e há um Brasil que paga spread de 20%. O spread de 20% subsidia o de 2%. Isso se reflete na multiplicidade de alíquotas e sistemas tributários. As desonerações do governo federal para setores específicos chegam a 5% do PIB. Isso se reflete nas distorções de preços que permeiam um número surpreendente de setores. Em outros países, as tarifas de importação giram em torno de 5% a 10%. No Brasil, são de 30% a 40%. Isso se reflete no Estado surpreendentemente grande, se comparado com países parecidos com o Brasil. No Brasil, a carga tributária é 37% do PIB. Estamos quase 10% acima de outros países. Isso tudo se traduz numa economia bastante cara e ineficiente, com custos maiores de produção, impostos mais altos, taxas de juros mais elevadas, menor renda real e menor capacidade de crescimento.
ÉPOCA - O cidadão assalariado costuma associar os privilégios aos políticos, aos altos funcionários públicos e aos grandes empresários. Seu artigo lista outros privilégios, como a Zona Franca de Manaus e a meia-entrada no cinema. Por que eles não são encarados da mesma forma?
Lisboa - Nos regimes autoritários, como o de Vargas, os privilégios eram restritos a alguns grupos. Desde o fim do regime militar, houve uma democratização dos privilégios. Na área de cultura, eles se refletem nas desonerações fiscais para o livro de arte e na meia-entrada para o cinema. Progressivamente, a naturalidade da política pública na concessão de benefícios aos setores produtivos foi se disseminando. Numa sociedade profundamente heterogênea como a brasileira, todo mundo tem algum benefício, vê o que recebe e defende seus interesses. Existe, porém, um pouco de autoengano. Ao defender a meia-entrada, o pequeno privilégio, acabam-se preservando o sistema e os grandes custos que todos pagamos. Ao fim do dia, para muitos o saldo líquido é negativo. O pouco que se recebe é pequeno, perto do muito que se paga em termos de efeitos negativos sobre o investimento, a geração de empregos e o crescimento de nossa economia.
ÉPOCA - Grupos de pressão em busca de privilégios existem também em democracias maduras e sociedades educadas. O que distingue o Brasil de outros países?
Lisboa - No artigo, usamos o termo "busca por renda institucionalizada" para ressaltar que essa tendência vai muito além da existência de grupos de pressão pedindo exceções à regra. Uma das características do Brasil é que muitas vezes os grupos de pressão são criados pelo próprio governo, como ocorre com diversas políticas de desenvolvimento. A justificativa é que um setor precisa de uma proteção temporária, para poder se tornar competitivo. Infelizmente, muitas vezes a política fracassa. Como retirar os privilégios e benefícios? Quando você cria grupos de interesse, muitas vezes uma política que deveria ser temporária se torna permanente. Foram criadas empresas e empregos, mas a um custo que empobrece o país. Esse capital e trabalho poderiam ser mais produtivos em outras atividades. A transição é custosa, e os grupos de pressão procuram vetar a mudança da política de benefícios. Vivemos isso em vários setores no passado, como a indústria naval e a informática. O caso possivelmente mais simbólico é a Zona Franca de Manaus. Talvez tenhamos de nos resignar em pagar um pouco mais de imposto pelo resto de nossas vidas para subsidiá-la.
ÉPOCA - Sua crítica também vale para benefícios dirigidos aos pobres, como o Bolsa Família?
Lisboa - O Bolsa Família é um programa muito meritório. Representa 0,5% do PIB, um número bastante baixo, quando comparado a outras políticas menos visíveis. E o Bolsa Família é transparente.
Seria bom que toda política pública tivesse a clareza e a transparência do Bolsa Família. Toda sociedade terá exceções e protegerá alguns grupos. Agora, é preciso fazer isso de forma transparente: Quanto? Para quem? Quanto a sociedade ganha com essa política? E aí a sociedade faz suas escolhas de políticas de saúde, educação, ou até mesmo de uma política industrial para apoiar a inovação tecnológica de determinada área. Mas é preciso fazer isso com clareza no orçamento, para que as pessoas saibam quanto custou e qual foi o resultado. Como hoje não há transparência do custo dos diversos benefícios e privilégios concedidos por meio do poder público, é muito mais fácil para os interesses localizados ter tratamento privilegiado. Com o volume de recursos que o BNDES tem, qual o resultado de suas políticas? O que funcionou e o que não funcionou? Temos aí décadas de políticas industriais localizadas. Estamos começando, novamente, uma política para desenvolver a indústria naval. Novamente, a sociedade paga para tornar viável o desenvolvimento de uma indústria que, nas últimas duas vezes, custou caro para o país. Hoje, várias decisões ficam relegadas a agências do governo, sem transparência. Você paga uma conta que não sabe que paga, porque foi decidido sem você.
EPOCA - O senhor esteve no governo. Por que é tão difícil que cada privilégio, isenção ou proteção sejam claramente apresentados no orçamento público?
Lisboa - É extremamente difícil por causa da imensa quantidade de subsídios cruzados, fora do orçamento, e da complexidade do próprio orçamento e das regras tributárias. Além do mais, há a resistência dos grupos beneficiados e da burocracia à transparência e à avaliação independente das políticas públicas. A gente percebe isso. Não temos a tradição de medir a eficácia das políticas públicas com indicadores claros. Isso é parte do problema, que perde visibilidade e fica difuso. Então resta apenas a percepção dos sinais das dificuldades, como a alta carga tributária e a sensação de que as coisas no Brasil são mais caras e mais difíceis que nos outros países - o que é verdade.
ÉPOCA - O senhor propõe a criação de uma agência independente do governo, para avaliar custos e benefícios das políticas públicas. Como evitar que ela seja capturada por interesses específicos ou esvaziada de seu poder, por um governo interessado em ter a palavra final na concessão de privilégios?
 Lisboa - Essa experiência existe em vários países da tradição anglo-saxã. Em alguns, como a Austrália, vai muito bem. Em outros nem tanto. É importante enfatizar que não seria um órgão de fiscalização, mas sim de avaliação, mais semelhante a um centro de pesquisa que anotasse o que cada política se propõe a fazer e medisse seus resultados. Deveria também estudar outras experiências, em outros países, e comparar políticas com o mesmo objetivo. Existem boas técnicas para garantir a avaliação das políticas públicas, até mesmo o saudável hábito de muitas vezes testá-las com grupos de controle antes de adotá-las indiscriminadamente. É preciso tratar a política pública com o cuidado que temos ao introduzir novos medicamentos. E garantir a transparência dos resultados. Não é uma proposta fácil. Mas esse é um debate que vale a pena.
ÉPOCA - Seu artigo foi considerado ingênuo por alguns economistas da linha desenvolvimentista. Como o senhor vê essas críticas?
Lisboa - Há uma visão de mundo, muito forte no Brasil, de que cabe ao Estado liderar o desenvolvimento. A introdução de distorções para beneficiar grupos é parte da política pública, aceita na sociedade. Aquilo que, no resto do mundo, é exceção, aqui é norma. Isso caracteriza a política do nacional - desenvolvimentismo. Nos demais países, esses mecanismos são limitados. Há uma série de pesos e contrapesos para evitar que essas distorções asfixiem o Estado e a sociedade. Talvez seja o caso de induzir um desenvolvimento institucional, que permita o surgimento de instituições que tornem possível o controle da sociedade sobre a quantidade dos beneficiados pelas concessões. Vários beneficiados serão preservados. Outros talvez não.

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