domingo, 4 de agosto de 2013

Auto de resistência: instituição informal competitiva




Excessos da polícia na pauta
04 Ago 2013

O pedreiro Amarildo Dias de Souza desapareceu há quase 20 dias e ainda não há pistas do que ocorreu após o depoimento que ele foi obrigado a dar na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Embora ainda sob investigação, o caso poderá engrossar as estatísticas que mostram que cerca de 17 mil pessoas foram mortas por policiais nos últimos 13 anos no Rio e em São Paulo. Isso representa uma média de 1,3 mil por ano ou três pessoas por dia. Como elas são computadas como "autos de resistência" — quando o agente público pode ter agido em legítima defesa —, essas mortes dificilmente são investigadas e levantam a suspeita de "falsos registros de ocorrências policiais". Propostas que tramitam no Congresso Nacional apontam para possíveis soluções a esses casos que revelam o histórico despreparo da polícia brasileira.
Na Câmara, um projeto de lei que deve ser votado no plenário ainda este mês prevê que mortes e lesões corporais decorrentes das ações policiais sejam investigadas como crimes praticados por cidadãos comuns. O texto é tratado como prioridade pelo Ministério da Justiça e já recebeu parecer favorável em todas as comissões por que passou. "Se o inquérito para investigar as mortes for obrigatório, os policiais também passarão a respeitar a missão da instituição, que é garantir a segurança da população e o respeito à lei", comenta o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), um dos autores da proposição.
Apesar de não constarem em lei, os "autos de resistência" são utilizados por policiais para justificar as mortes resultantes de ações policiais em que o "alvo" resistiu à prisão. Com isso, os agentes acabam não sendo punidos pelos assassinatos. No início deste ano, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos publicou uma resolução recomendando autoridades policiais a extinguirem a possibilidade desse registro, considerado genérico, em ocorrências. O nome correto deveria ser "lesão corporal ou homicídio decorrentes de intervenção policial" e todos deveriam passar pela mesma investigação feita nos casos de homicídios comuns. A orientação segue o que já foi indicado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelas Nações Unidas (ONU).
A recomendação, porém, não foi seguida por todos os estados. No Rio de Janeiro, por exemplo, onde 10.769 pessoas foram mortas por policiais em serviço desde 2001, a expressão ainda é usada. Em São Paulo, com 6.223 mortes semelhantes em 13 anos, o termo "auto de resistência" mudou em janeiro e houve uma determinação para que os policiais não socorressem mais vítimas envolvidas em confronto com a polícia, para não descaracterizar a cena.
Ainda assim, no primeiro trimestre deste ano, houve 69 mortes resultantes de ações desse tipo no estado. O índice alarmou a organização internacional Human Rights Watch (HRW), que enviou uma carta ao governo paulista na última semana destacando preocupação. Após analisar algumas mortes, a HRW identificou indícios de falsos relatos de resistência e da participação de policiais em acobertar homicídios, "levando cadáveres de suas vítimas a hospitais sob o falso pretexto de resgatá-las, destruindo provas essenciais e prejudicando a perícia".
Para o sociólogo Michel Misse, que pesquisa o assunto no Núcleo de Estudos da Cidadania e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), só a mudança na lei não será suficiente. "O auto de resistência é uma invenção administrativa que só existe no Brasil para escapar da verdade. Se a lei fosse cumprida à risca, esse tipo de morte já seria tratado como homicídio desde o início, e quem deve definir se foi em legítima defesa é o juiz, não o policial que o cometeu", argumenta.
Misse destaca que a cultura de que as ações policiais naturalmente são feitas de forma violenta ajuda a legitimar o despreparo das corporações de segurança brasileiras, evidenciado também durante as manifestações que sacudiram o país desde junho, principalmente no Rio e em São Paulo. "Nós nos acostumamos a achar que polícia pode matar ou jogar bala de borracha em ação, mas isso está errado. A lógica da violência corrompe todo mundo, o criminoso que passa a atirar na polícia e o policial que enfrenta cidadãos como inimigos, atiçando ainda mais os manifestantes enraivecidos com a desproporção absurda com que são tratados", conceitua o especialista.

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