segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O autoritarismo do processo penal


0 processo penal é nossa instituição mais autoritária
24 Dez 2012

Opinião

 Alberto Carlos Almeida


Muita gente associa o autoritarismo no Brasil a tudo o que aconteceu durante a ditadura militar. Quem faz isso afirma que tudo o que ainda temos de autoritário é herança desse período. Mas uma de nossas mais autoritárias instituições, senão a mais autoritária, não é herança da ditadura. Trata-se do processo penal brasileiro, cujas bases datam pelo menos da década de 1940.
O julgamento do mensalão teve vários méritos, um deles foi tornar ainda mais público os procedimentos penais brasileiros. Quem já leu o Código de Processo Penal Brasileiro, seja por dever de ofício, seja por curiosidade, sabe que a investigação policial é a peça-chave do processo.
Quem já viu o seriado americano Lei & ordem sabe que, nos Estados Unidos, a investigação policial não é a peça-chave do processo. Mais do que isso, sabe que a polícia faz uma investigação e envia o que viu e constatou para a Justiça. É a Justiça quem decide o que entrará no processo penal. Entenda-se por Justiça o juiz, a promotoria e a defesa.
Nos Estados Unidos, a investigação policial não entra necessariamente no processo. O que entra e o que fica de fora é decidido conjuntamente pela promotoria e pela defesa, sob a arbitragem do juiz. A defesa tem, portanto, controle sobre o que vai para os autos do processo. No Brasil, não acontece assim. A polícia e o "Ministério Público (MP), instituições do Poder Executivo, controlam o que vai para os autos do processo penal. Qualquer pessoa no Brasil que seja objeto de uma investigação policial ou diligência do Ministério Público pode estar certa de que os fatos levantados por essas instituições acabarão por incriminá-la. É líquido e certo. É óbvio que acontecerá isso, pois o advogado de defesa não tem controle algum sobre os fatos da investigação que valem para o processo penal.
O sistema penal americano é acusatório. Nosso sistema é inquisitório. No sistema americano, há a presunção da inocência do acusado. No Brasil, há a presunção da culpa. Nos EUA, o réu ocupa, no tribunal do júri, uma cadeira comum, ao lado de seu advogado, no mesmo patamar do promotor. No Brasil, o réu fica num lugar especial: o banco dos réus, cujo significado é bem expresso por um ditado popular muito conhecido: "Onde há fumaça, há fogo". Esse ditado é profundamente inquisitorial, ele presume a culpa.
A grande reforma política de que o Brasil necessita é jurídica: reformar nosso processo penal tornando-o acusatório, tal como é nos Estados Unidos. As instituições judiciárias educam as pessoas para a democracia ou para o autoritarismo.
No Brasil, elas educam para o autoritarismo, porque o réu não tem nenhum controle sobre as provas que o levam ao tribunal. Trata-se de um verdadeiro absurdo, algo inaceitável para os padrões anglo-saxões.
O advogado de defesa precisa tomar parte de definição do que vale e do que não vale no processo penal. É justamente por isso que a polícia americana precisa ser absolutamente imparcial. Só assim suas provas são aceitas, Se ela obtiver provas ilegais, forçar a mão para incriminar o réu, se for preconceituosa, o juiz não aceitará, a pedido do advogado de defesa, a investigação policial ou dos promotores. A polícia americana, ao investigar, tem de ser imparcial e fundamentar ao máximo os fatos. A polícia brasileira e nosso MP não precisam de tanto esforço. O que investigam é parte dos autos e, em geral, o objetivo é incriminar.
Outro absurdo de nosso sistema é que a mentira do réu ou do advogado de defesa não é crime. A mentira é crime de perjúrio no Brasil apenas por parte das testemunhas. Se, por um lado, a defesa não participa da definição do que será aceito como prova para o julgamento, por outro lado ela pode mentir. As duas coisas precisam ser modificadas. Nem uma nem outra podem vigorar num país tão democrático como o nosso.
Olhando retrospectivamente o julgamento do mensalão, podemos fazer uma crítica a todos aqueles que previram a absolvição. A Justiça brasileira inquisitorial foi feita para condenar. Qualquer réu submetido a processo penal está condenado por antecedência. Ele só escapa se negociar diretamente com o juiz, isso raramente acontece. A recente declaração de Marcos Valério - afirmando que, se o julgamento tivesse sido em primeira instância, ele não seria condenado - mostra justamente isso. Por que o resultado teria sido diferente se o processo penal, a investigação, as provas eram as mesmas? Só há uma resposta possível: sujeito a pressão, um juiz de primeira instância absolveria Valério. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não são juizes de primeira instância, não cedem a pressões.
A rigor, os ministros do STF se comportaram no julgamento do mensalão como juizes de primeira instância. Eles se curvaram ao indicia-mento feito por instituições não judiciárias. O minislro Luiz Fux afirmou que as provas eram incontestáveis. Em vez disso, juizes de tribunais superiores deveriam ser capazes de definir que prova é válida ou não. É isso que faz valer o adjetivo superior ao substantivo tribunal.
O brasileiro médio quer que todos os réus, pelo simples fato de ser réus, sejam condenados. Nossa Justiça reflete isso. Alguns podem pensar que o processo acusatório seria favorável aos acusados de corrupção. De maneira alguma. Ele seria bom para toda a sociedade. Precisamos decidir o que queremos. Desejamos que as pessoas entendam e absorvam as regras? Ou que sejam simplesmente punidas, mesmo que achem injusto o processo que levou à punição? No segundo caso, inevitavelmente não há absorção da regra.
Nosso sistema inquisitorial desfruta menos legitimidade que o sistema acusatório americano. Uma sociedade democrática demanda um processo penal democrático, em que se presuma a inocência do réu. A reforma desse sistema é muito difícil. Mas é um desafio que o Brasil precisa enfrentar É exatamente porque temos tal sistema que a Justiça brasileira é tão malvista pela população. Falar em justiça no Brasil é sinônimo de falar de perseguição injusta, afinal, o advogado de defesa não participa da definição do que vale como prova num julgamento.
Alberto Carlos Almeida é cientista político e autor dos livros A cabeça do brasileiro e O dedo na ferida: menos imposto, mais consumo

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