segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Bandidos de farda

Veja 29 agosto 2011
Os bandidos de farda


Até há pouco uma ameaça restrita às favelas do Rio de Janeiro, as milícias agora se espalham pelo Brasil


Vieram com assinatura as balas que mataram a juíza Patrícia Acioli, 47 anos, no ultimo dia 12, no Rio. Calibre 40, elas pertenciam a um lote comprado pela Polícia Militar e distribuído entre vários batalhões, incluindo o de São Gonçalo, onde atuava a magistrada. Nessa região, viceja uma praga que Patrícia se dedicava a combater com especial empenho: as chamadas milícia, quadrilhas que, nascidas das fileiras da polícia com propósito vagamente bem-intencionados, se convertem rapidamente em bandos de matadores a soldo dos próprios interesses ou de quem pagar melhor. Até há pouco tempo, esse cancro estava restrito ao Rio de Janeiro. Agora, alastra-se pelo, território nacional.
Levantamento realizado por VEJA junto à Polícia Federal e polícias estaduais mostra que, com maior ou menor grau de organização, as milícias estão presentes em pelo menos nove estados brasileiros, além do Rio: Alagoas, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Paraíba, Paraná, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Há desde células pequenas, com não mais do que dez integrantes, até organizações que comportam mais de uma centena de membros. A absoluta maioria desses grupos é formada por policiais e ex-policiais civis e militares, mas há os que incluem também egressos da Polícia Federal, do Exército e da Aeronáutica. O traço comum é o uso da violência e a sensação de pairar acima da lei. Seus integrantes, quando não abandonam as corporações a que pertencem para se dedicar em tempo integral à delinquência, fazem pior: usam a farda para, sob a proteção do estado, extorquir, ameaçar e matar.
"As milícias se transformaram em um negócio. O que elas querem é ganhar dinheiro, não importa como. Matam por encomenda, extorquem e exterminam quem se recusa a pagar. Incluem de soldados a oficiais", declarou a VEJA o homem cujo retrato estampa as páginas que abrem esta reportagem. Hoje convertidos em informante da polícia do estado da Paraíba, ele foi por cinco anos integrante de uma milícia que espalhou o terror nas favelas de Taipa e Mandacaru, na periferia de João Pessoa. O grupo era formado por policiais militares. Quem ousasse contestar sua autoridade não sobrevivia por muito tempo. Só em 2009, o bando matou noventa pessoas, segundo estimativas da Secretaria de Segurança do governo da Paraíba.
A milícia de João Pessoa seguiu o roteiro-padrão: começou com um grupo de policiais decididos a matar bandidos a pretexto de "impor a ordem" em uma região. O faro de dispor de treinamento, armas e munição facilitou a tarefa e fez com que, em pouco tempo, ele passasse a ser temido e respeitado pela bandidagem local. Ultrapassada a fronteira que separa o crime da lei, o próximo passo foi cobrar pelo "serviço". A pistolagem de aluguel para bandos de traficantes interessados em eliminar uma facção rival mostrou-se um negócio lucrativo. "Conheço major que ficou rico", diz o miliciano arrependido.
Estruturada, a quadrilha de João Pessoa evoluiu para um terceiro estágio. Ao perceber que poderia eliminar não apenas uma, mas todas as facções de bandidos da área em que atuava, decidiu assumir o controle de todo o território. Passou a cobrar uma "taxa de segurança" dos moradores para manter os antigos bandidos afastados. Foi a mesma seqüência observada do Rio de Janeiro, espécie de laboratório desse tipo de banditismo. Lá, a primeira área controlada pelas milícias foi a favela Rio das Pedras. em Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade. Depois de expulsarem traficantes, os milicianos começaram a cobrar por segurança. Em seguida, partiram para a cobrança de pedágio" para todos os serviços que considerassem "tributáveis" - incluídos aí a venda de bujões de gás, a operação de serviços informais de mototáxi e as ligações clandestinas de TV por assinatura. Tudo passou a requerer a "contribuição da milícia". Com base nesse tipo de expediente, um grupo do bairro da Taquara, também em Jacarepaguá, chegou a arrecadar 200 000 reais por mês. Ele foi desbaratado neste ano, durante uma operação da Policia Civil. Em 2005, um estudo do Núcleo de Pesquisa das Violências da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) detectou a existência de milícias em 10% das favelas cariocas. Hoje, estima-se que esses bandidos de farda controlem 41% delas.
Pelo país, a praga das milícias disseminou-se de tal forma que nem os índios da Amazônia escaparam. O grupo que se intitula Piasol - Polícia Indígena do Alto Solimões - é formado por índios que serviram no Exército. Seu alvo, inicialmente, eram índios embriagados. Quem fosse pego nessa condição apanhava e passava 24 horas preso em celas improvisadas, como chegou a registrar um fotógrafo do jornal. A Crítica, de Manaus, em 2009 (como pode ser visto na foto acima). Não demorou para que a milícia indígena cedesse à mesma tentação que afeta os seus congêneres: hoje, a Piasol já cobra "taxas" sobre o comércio de produtos nas aldeias sob sua influência. No ano passado, um dos chefes do bando, Adir Ticuna, foi candidato a deputado estadual pelo PT.
Países como o México e a Colômbia também convivem com milícias, mas o caso brasileiro tem contornos únicos. "Nesses países, as milícias atuam de forma centralizada. Já no Brasil, os grupos são absolutamente pulverizados. Não há nenhum contato entre as quadrilhas", explica o sociólogo Ignácio Cano, da Uerj. Só o que une os grupos brasileiros é o uso deturpado que fazem do termo que os batiza. "O termo" milícia" remete a um exército popular, organizado para defender os interesses da população. Esses bandidos se apropriaram dele para dar legitimidade aos crimes que cometem", afirma Cano. Nos últimos dois anos, um grupo formado pelo Ministério Público, pela Policia Federal e pela Agência Brasileira de Inteligência se reuniu para preparar um diagnóstico da atuação das milícias no país. Poucos governadores, no entanto. aceitaram repassar informações. "Há forte resistência de muitos estados em reconhecer a presença dessas quadrilhas", diz o promotor Francisco de Assis, do Rio, que coordenou o grupo. A resistência dos governos a encarar o problema é proporcional à responsabilidade que eles têm na sua formação. É nos lugares em que o estado está ausente que qualquer coisa organizada viceja - ainda que seja o crime. A juíza Patrícia Acioli lutou contra essa equação perversa. Sua morte é uma derrota para o país.

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