domingo, 17 de julho de 2011

O Brasil que ainda tortura

O Brasil que ainda tortura
Sun, 17 Jul 2011 07:51:20 -0300
 

O que a delegação da ONU, que virá ao Brasil em setembro, irá encontrar em todo o território nacional
Solange Azevedo

Duas décadas e meia depois do fim da ditadura militar (1964-1985), o Brasil não está livre da tortura – uma das pragas que marcaram o regime. Sevícias como pressão psicológica, choques, espancamentos, violência sexual e assassinatos ainda fazem parte do cotidiano de delegacias, batalhões da PM, presídios e unidades para adolescentes infratores. Nos anos de chumbo, as vítimas preferenciais eram estudantes engajados, intelectuais e líderes políticos. Os militares se viram obrigados a arrefecer quando as ações praticadas nos porões da repressão repercutiram no Exterior. Atualmente, os torturadores mostram sua face mais cruel aos pobres e encarcerados. Pessoas sem voz e com pouquíssimo acesso à Justiça. Mas tudo indica que a violência contra esses cidadãos, em breve, também repercutirá além das fronteiras nacionais e voltará a abalar a imagem do País. Uma delegação do Subcomitê da ONU para a Prevenção da Tortura virá ao Brasil, provavelmente em setembro, e fará visitas-surpresa a locais de privação de liberdade. O objetivo do grupo é traçar um panorama das agressões e pressionar para que o Estado tome providências.
Não existem números confiáveis sobre tortura no País. Como se trata de um crime praticado, em geral, por policiais ou carcereiros, as vítimas têm medo de denunciar. Casos como o dos seis PMs presos em flagrante na semana passada por terem ameaçado e ateado fogo num morador de rua em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, são raríssimos. O que chega aos tribunais é uma pequena parcela do que ocorre diariamente. “A tortura no País é cultural, generalizada e sistemática. Começou no período da escravidão e se mantém até hoje”, afirma Margarida Pressburger, integrante do Subcomitê da ONU. “A vocação brasileira para a tortura se solidificou porque os torturadores não são punidos.” Para castigar, arrancar confissões ou obter informações sobre terceiros, agentes do Estado adotam a ferramenta criminosa da tortura como método de trabalho.
“Os dados nacionais mais recentes são de 2003. Depois disso, o programa Disque-Denúncia federal foi desativado. Em dois anos, foram recebidas 20 mil denúncias”, diz Luciano Mariz Maia, procurador da República e membro do Comitê Nacional Contra a Tortura. Maia afirma que, de cada três casos de tortura, um é praticado por policiais civis, um por PMs e o outro por categorias como a dos carcereiros e dos guardas civis. “Em um terço dos registros, não há crime aparente, como quando alguém é pego só porque está olhando o quintal de uma casa”, relata o procurador.
Pela lei brasileira, torturar é “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com o fim de obter informação, declaração ou confissão” ou “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”. O engenheiro R., 34 anos, sentiu na pele o que isso significa. Vive à base de remédios desde 2007, quando foi detido por policiais do Departamento de Investigações sobre Crime Organizado (Deic), em São Paulo. Suspeito de repassar linhas de teste da Vivo para o crime organizado, ele foi abordado sem mandado de prisão, algemado e jogado numa viatura. No trajeto até o Deic, de acordo com o depoimento de R. à Corregedoria, os policiais pararam num galpão e o torturaram. Ele afirma que levou socos, choques nas pernas e no ânus e foi abusado sexualmente.
Os policiais exigiram que ele confessasse um crime que não havia cometido. No ano passado, R. foi inocentado pela Justiça. Apesar da absolvição, ele não consegue levar uma vida normal. Faz acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Já tentou suicídio. Raramente sai de casa e entra em pânico quando vê aglomerações. R. perdeu tudo: o emprego, a mulher, os amigos, a saúde. Ele denunciou o caso à Corregedoria. Mas o órgão arquivou duas apurações preliminares alegando “ausência de elementos e fragilidade da declaração prestada”. Entre 2007 e maio de 2011, segundo a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, 77 policiais civis foram demitidos por violência – o que inclui, entre outros delitos, lesão corporal e tortura.
“Quem investiga é a própria polícia ou funcionários dos presídios. Muitas vezes, é o torturador quem leva a vítima para o exame de corpo de delito, e os médicos que fazem os laudos se omitem”, diz José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional. “É um problema o Judiciário imaginar que torturadores são psicopatas”, afirma o procurador Maia. “A tortura é racional e quem a pratica acha que está fazendo algo positivo para a sociedade, que está desvendando delitos. No meio em que esses indivíduos estão inseridos, é uma escolha intimamente defensável.”
A enfermeira S., 42 anos, foi presa em março de 2010. Ela relata que, logo depois de pegar carona com um amigo da filha e um conhecido dele, uma viatura os abordou. Ao revistar o carro, um dos PMs teria encontrado uma arma debaixo do banco. Começava ali o tormento. S. conta que os três foram levados para o 37o Batalhão da Polícia Militar, na zona sul da capital paulista. “Estava algemada e fui empurrada várias vezes contra a parede, fiquei com um galo na testa. Me jogavam no chão, davam socos na minha nuca e chutes na minha bunda, me puxavam pelos cabelos”, diz. “Ficavam me perguntando quem era o dono de uma moto amarela e falando que, se eu indicasse alguma boca de fumo, eles me soltariam. Mas eu não vi nenhuma moto.”
S. chora ao recordar que uma policial exigiu que ela ficasse nua para ser revistada. “A porta estava aberta e todo mundo que entrava se achava no direito de me bater”, lamenta. “Os policiais riam e falavam: ‘Olha que desgraça, que baranga’. Um deles beliscou o meu mamilo. Fiquei das quatro da tarde até umas 7 horas apanhando. Os meninos pagaram R$ 5 mil e foram liberados. Só falaram que o revólver estava na minha bolsa porque também foram torturados.” S. passou 38 dias na cadeia. Procurada por ISTOÉ, a Assessoria de Imprensa da PM foi lacônica. Em nota, respondeu que a responsabilidade administrativa de três policiais, “por terem conduzido pessoa presa para dependências do quartel para que fosse realizada revista pessoal minuciosa”, está sendo apurada.
“Quando agressões são um método investigativo e agentes públicos se sentem no direito de mitigar a vida, a tortura se torna apenas um detalhe”, afirma o advogado Rildo Marques, do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. Em junho, J. encontrou o neto com hematomas nos braços e nas pernas. Ele é um dos 16 internos que apanharam na Unidade 28 da Fundação Casa (antiga Febem paulista). “Tinha menino com o pé quebrado, com pontos na cabeça, com o dedo decepado”, diz J.
O relato dessa senhora, de 62 anos, foi confirmado à ISTOÉ por mães de outros três internos. A instituição, no entanto, não admite tamanha violência. “Há indícios de que o tumulto foi iniciado pelos adolescentes e que houve excesso de alguns funcionários. Estamos apurando”, alega Jadir Pires de Borba, corregedor da fundação. “Houve confronto. Há adolescentes com escoriações e ferimentos na cabeça, mas nenhum com fraturas ou dedo decepado.” Seis funcionários foram atendidos no pronto-socorro. Desde 2005, 77 servidores da instituição foram demitidos por justa causa em decorrência de agressões e maus-tratos.
A tortura física pode deixar marcas visíveis. A psicológica, não. J., 26 anos, passou 2010 no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Taubaté. Dependente de crack e inserido num quadro que a ciência chama de “borderline” – um distúrbio em que o indivíduo apresenta sintomas inerentes a qualquer ser humano, mas com uma intensidade que o afasta do eixo da normalidade – ele foi internado após roubar um celular e ser considerado pela Justiça paulista incapaz de responder por seus atos.
Na companhia da mãe, J. contou que ficava trancafiado na cela 20 horas por dia e que não recebeu tratamento médico. “Minha mãe pediu para o pessoal do hospital não me dar prestobarba, porque eu me cortava. Mesmo assim, eles davam. Uma vez, avisei a um funcionário que eu estava surtando e que ia me cortar. Ele me falou para esperar o turno dele acabar e passar a lâmina no pescoço”, diz o rapaz. “Fizeram alguma coisa na minha cabeça. Sai pior do que entrei. A psicóloga falava que minha mãe estava contra mim.” Contatada por ISTOÉ, a SAP não se manifestou.
O Subcomitê da ONU encontrará histórias escabrosas. A sequência de torturas praticadas por policiais no Rio de Janeiro levou parlamentares a tomar uma providência inédita no Brasil. O deputado Marcelo Freixo (PSOL) criou, através de lei, o Comitê de Prevenção à Tortura no Estado para monitorar delegacias, presídios, unidades socioeducativas e manicômios. “A ditadura militar acabou, mas a tortura continua”, garante Freixo. Não faltam exemplos. Em março, T., 42 anos, foi agredido durante três horas numa delegacia da capital fluminense. “Queriam que eu confessasse que era parceiro de um traficante”, afirma. “Eram cinco policiais me batendo e me xingando. Davam socos e tapas. Tentaram me chutar no rosto, mas me protegi com as mãos e fiquei com os dedos machucados. Um deles pegou um alicate, apertou e puxou meu pênis”. Diante da dor insuportável, T. assinou a confissão. Cinco policiais que o agrediram chegaram a ficar 15 dias presos.
Assim como outras vítimas entrevistadas para esta reportagem, T. preferiu manter o anonimato porque teme pela própria segurança e de familiares. Indaiá Moreira, 43 anos, não. Ela percorre os tribunais fluminenses em busca de Justiça desde 2009. O filho dela, Vinicius, morreu 20 dias depois de ser preso. “Torturaram e mataram meu filho dentro da delegacia”, conta Indaiá. Vinicius, 20 anos, tinha um ferimento subcutâneo na cabeça, o que lhe causou um coágulo, e marcas de queimaduras de cigarro pelo corpo. Indaiá recebeu uma indenização de R$ 50 mil porque o Estado reconheceu que falhou na guarda de Vinicius, pego numa tentativa de assalto. “Não me interessa o dinheiro, quero que os responsáveis pela morte dele sejam punidos”, sentencia Indaiá. “Sei que vai ser difícil, mas vou lutar até o fim.”

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